Por Thaïs Chauvel, mestra em Letras e doutoranda USP
Quando evocamos Dante e o relancionamos a uma figura feminina, o primeiro nome de mulher que vem à mente costuma ser o de Beatrice, personagem emblemática da Divina Comédia. Há mais de 700 anos, é ela que convida Virgílio a guiar Dante, narrador-personagem, em sua viagem pelo Inferno e Purgatório e, quando este poeta latino – e pagão – já não pode prosseguir a jornada pelo Paraíso, é ela, a própria Beatrice, que segue acompanhando o florentino. Presente, portanto, do início ao fim deste majetuoso poema que logo se transformou num clássico incontornável da literatura universal, não é de se espantar que o nome de Beatrice seja, de imediato, associado ao de Dante. Por mais que sua fama justificada, ela não é, contudo, a única figura feminina marcante da Divina Comédia. Há outra mulher, cujo nome é entoado por Dante no Canto V do Inferno: Francesca. Diamentralmente oposta a Beatrice – símbolo de pureza e virtude –, Francesca é uma pecadora cuja história comoveu, não só Dante, como gerações de leitores. É a esta mulher, que o poeta encontra no segundo círculo do Inferno pagando pelo pecado da luxúria, que este artigo se dedica.
Para tanto, é preciso analisar, primeiro, a estrutura deste famoso Canto V do Inferno, com foco na parte em que o casal composto por Francesca da Rimini e Paolo Malatesta aparece. Depois de lembrar que o assassinato deste casal foi um acontecimento marcante da juventude de Dante, observaremos algumas particularidades do diálogo entre o poeta e Francesca, a quem ele dá voz reproduzindo sua fala no discurso direto. Analisando, então, o relato no qual Francesca narra as circunstâncias que a levaram à danação eterna, mostraremos como o livro – e, por extensão, a literatura – é apontado como responsável pelos erros cometidos em vida.
No quinto Canto da Divina Comédia, Dante adentra o segundo círculo do Inferno onde se pune “a trangressão carnal, que desafia/ a razão e a submete a seu talante” (vv. 38-39). Note-se que o pecado da luxúria é descrito como aquele que acomete a razão, fazendo com que o indivíduo tome decisões inspirado pelas suas paixões e não mais de maneira sensata e racional.
Do verso 52 ao 69, Virgílio apresenta um catálogo de personagens fictícios e históricos que foram acometidos pela luxúria e que se econtram, portanto, neste segundo círculo do Inferno. Cabe lembrar que, embora ele mencione três homens – Aquiles, Páris e Tristão – nos últimos três versos de sua fala, Virgílio concentra a maior parte de sua exposição (12 versos) às mulheres: Semíramis, Dido, Cleópatra e Helena.
A primeira que ele descreve é a imperatriz Semíramis “por sua luxúria foi tão possuída/ que líbito fez lícito em sua lei,/ Pra escapar da censura merecida;” (vv. 55-57). Vale observar que o tema da lei, mais precisamente, da justiça humana aparece aqui intimamente relacionado à luxúria. Para tornar seu comportamento libidinoso aceitável, Semíramis, que detêm o poder, não hesita em alterar as leis com o intuito de “escapar da censura merecida”. Cumpre ressaltar ainda que a imperatriz lançou mão de seu livre arbítrio – ou seja, da sua liberdade de escolha – para efetuar as mudanças necessárias de modo que a lei por ela reformada considerasse sua libinagem legal. A questão do livre arbítrio é, vale lembrar, cara a Dante. A importância deste tema é evidenciada pela aliteração em “L” do verso no original: “che libito fé licito in sua legge” (v. 56), destacando-o dos demais. A semelhança entre os vocábulos “líbito” e “lícito”, nos quais uma única letra é alterada – o “b” sendo trocado por um “c” –, reforça a facilidade com a qual a Semíramis alterou a lei humana como melhor lhe convinha. Ora, se seu poder enquanto imperatriz permitiu-lhe usar o seu livre arbítrio para evitar as consequências legais de seus excessos, ele nada pôde contra o poder divino que a condenou a pagar eternamente pelo seu pecado. Por meio do exemplo de Semíramis, Dante demonstra que, embora a justiça humana seja falível, a justiça divina é invencível e implacável.
Logo em seguida, surge a figura literária de Dido, rainha de Cartago, esposa de Siqueu e também personagem-chave da Eneida, escrita pelo próprio Virgílio, também autor desta fala. O que se diz dela é relativamente sucinto: “Aquela outra é a que se matou, amorosa,/ rompendo o voto às cinzas de Siqueu;” (vv. 61-62). Seu suicídio após a partida de Eneias é enfatizado por Virgílio que era, no entanto, um poeta romano e pertencia, portanto, a uma cultura na qual o suicídio era louvável e não condenável como no catolicismo. Ainda assim, a Divina Comédia, bem como seu autor, é um poema católico que considera este crime abominável. Além disso, ao tirar sua própria vida, Dido também quebrou a promessa que havia feito a Siqueu. Sua moralidade é, dessa forma, questionável, não só porque se matou, mas também porque violou seu voto. Tudo isso, vale lembrar, por conta do amor incontrolável que sentia pelo troiano.
“Cleópatra após vem, luxuriosa.” (v. 63) é o breve comentário feito por Virgílio a respeito da rainha do Egito que seduziu os dois maiores generais romanos: Júlio César e Marco Antônio. E então, surge Helena de Esparta “por quem tanta ocorreu/ desgraça” (vv. 64-65), em referência à Guerra de Tróia, da qual é tida como responsável. Outro personagem mítico da Ilíada é citado logo em seguida: “o grande Aquiles, que ora vês,/ por amor combatendo pereceu.” (vv. 65-66). Nas figuras de Dido que se suicidou, de Helena que a morte de tantos o seu rapto causou, e de Aquiles que até o fim por vingança lutou, a proximidade de éros e thánatos é tangível, evidenciando que o amor carnal não raro leva à morte. O catálogo de Virgílio se encerra com uma simples menção a Páris e Tristão, sobre os quais não é preciso acresentar nada, já que Páris causou a queda de sua cidade e Tristão morreu de amor por Isolda. Nas referências a Páris, Helena e Tristão, evoca-se, de modo premonitório, as trágicas – e inevitáveis – consequências do amor adúltero.
Dante conclui, com a menção a Tristão, o catálogo de Virgílio, mas este continua enumerando personagens históricos e/ou literários já que o poeta afirma: “e, vez por vez/ mais de mil indicava-me, entretido,/ sombras a quem amor vida desfez.” (vv. 67-69). Enquanto contempla todas aquelas almas, vítimas do amor, um casal chama a atenção do poeta-personagem que deseja falar com aqueles “que unidos vão,/ e tão leves parecem ser ao vento” (vv. 74-75).
Até aquele ponto, Dante, nas palavras de Virgílio, havia enumerado personalidades imortalizadas pela História e pela Literatura com o intuito de lembrar os efeitos terríveis do amor. A partir deste momento, Dante vai imortalizar outro casal: Paolo Malatesta e Francesca da Rimini. Apenas o primeiro nome de Francesca é mencionado e ela é a única a falar enquanto Paolo só pode chorar. Note-se que, assim, o casal forma um todo complementar: ela fala, e ele chora. O modo como são retratados os coloca como uma unidade, o que os diferencia também das personagens evocadas no catálogo anterior. Aquelas eram citadas separadamente, nem mesmo o nome de Páris vinha acoplado ao de Helena e a menção a Tristão era individual. Todas aquelas sombras mencionadas iam, portanto, sozinhas. Não é o caso destas “che ‘nsieme vanno” (v. 74). A unidade deste casal é reforçada não só pela complementaridade das ações de cada um – a fala e a lágrima –, mas também pelo uso da primeira pessoa do plural. Com efeito, Francesca diz constantemente “nós”: “noi pregheremmo” (v. 92), “noi udiremo e parleremo” (v. 94), “Noi leggiavamo” (v.127). Num verso particularmente emocionante, Francesca declara: “Amor condusse noi ad una morte” (v.106). O que explica esta unicidade: é como se eles fossem uma única pessoa porque a mesma morte que os acometeu os uniu.
É Francesca que conta, a pedido de Dante, a história deles dois – o único casal representado enquanto casal neste Canto V. Quando o poeta diz: “Queste parole da lor ci fuor porte” (v.108, grifos nossos), ele confirma que tudo aquilo que ela diz se estende, de fato, aos dois. Sendo assim, Francesca é a porta-voz do casal e Paolo, silencioso, expressa, não por meio das palavras mas com suas lágrimas, todo o sofrimento que sua história em comum lhes causou. Há, de certo modo, uma inversão nos papéis masculinos e femininos, uma vez que, tradicionalmente, o choro é atribuído à mulher e a palavra é concedida ao homem.
Mais notável ainda é o fato de que Francesca é a primeira personagem a contar sua história em primeira pessoa na Divina Comédia, o que lhe confere certa importância. Não obstante, quando Francesca decide relatar o que aconteceu, ela afirma: “eu contarei, como quem chora e diz.” (v. 126), colocando-se como contadora ativa e consciente. Se analisarmos este verso na versão original – “dirò come colui che piange e dice.” (v. 126) – notamos que Dante empregou aqui o verbo “dirò”. Cumpre ressaltar este mesmo verbo “dire” já havia sido empregado pelo próprio Dante – “dirò de l’altre cose ch’i’ v’ho scorte” (I, v. 9) – e também por Virgílio: “dirotti perch’io venni e quel ch’io ‘ntesi” (II, v. 50). Dessa forma, ao colocar o verbo “dirò” na boca de Francesca, Dante eleva sua fala que torna-se tão legítima quanto as palavras proferidas pelo próprio Dante ou Virgílio. Se, até aquele momento, as mulheres mencionadas no Canto V eram todas silenciosas, mulheres “di cui si legge” (v. 58), o discurso de Francesca surge aqui como um verdadeiro contraponto ao silêncio das demais luxuriosas, a quem a palavra é negada. Sendo assim, Francesca, uma simples mulher contemporânea de Dante, não é apenas comparada a personagens históricas e épicas lembradas nos versos precedentes, como é elevada acima delas, já que lhe é dada a palavra.
É interessante observar também que, embora o seu nome não tenha sido comunicado a Dante em nenhum momento do Canto, este lhe diz: “Francesca, o teu tormento até as lágrimas move o meu pesar” (vv. 116-117). Comentaremos o efeito que a história de Paolo e Francesca tem em Dante mais adiante, por ora, o que nos interessa é o uso deste vocativo, um tanto quanto surpreendente. Como ele sabia o seu nome sendo que nem Francesca, nem Virgílio, lhe contara como ela se chamava? Seria uma maneira de mostrar que aquele fait-divers envolvendo o assassinato dos amantes Paolo e Francesca era a tal ponto notório que, devido as circunstâncias, Dante só poderia imaginar que se trata deles, reconhecendo-os imediatamente?
Mas o que foi esta história afinal? Em 1275, Francesca, filha de Guido il Vecchio da Polenta, signore di Ravenna, casou-se com Gianciotto Malatesta, signore di Rimini. Francesca envolveu-se com seu cunhado, Paolo Malatesta, cometendo um adultério que, segundo as leis da época, era considerado incestuoso (GAIMARI; KEEN, 2019, p. 73). Quando o caso foi descoberto, o casal foi brutalmente assassinado por Gianciotto, marido e irmão das vítimas. Este trágico acontecimento, ocorrido por volta de 1283/1285 – quando Dante era jovem –, marcou, não apenas sua juventude, mas todos seus contemporâneos também. Ora, se o fato era de tamanha notoriedade, para que recontá-lo no discurso – direto – de Francesca? Talvez porque, para além de uma parábola que ilustra perfeitamente os perigos aos quais o amor expõe os luxuriosos, esta história, tal qual Dante, através as palavras de Francesca, permite-lhe abordar também o papel da literatura e seus perigos.
Se, para os leitores contemporâneos de Dante, a história de Paolo e Francesca não cria suspense nenhum, tampouco para nós, leitores posteriores, há suspense uma vez que o casal já se encontra no Inferno. Assim, o leitor sabe, de antemão, que esta história acaba, necessariamente, mal. Sabemos disso porque esta história, na Divina Comédia, se inicia justamente pelo fim.
A narrativa de Francesca, ainda que profundamente emotiva e emocionante, é lacunar e elíptica – o que corresponde totalmente com o erotismo da cena contada. A temática amorosa é evidenciada também pela anáfora “Amor” que, por três vezes, abre uma estrofe proferida por Francesca: “Amor, que a alma gentil pronto apreende” (v. 100), “Amor, que a amado algum amar perdoa” (v. 103) e por fim “Amor nos conduziu a uma só morte” (v. 106). Tal anáfora não é puramente retórica, ela mostra como o Amor passa a ser dominante, como ele domina a sua vida e a conduz, inevitavelmente, à morte. Cabe observar, também, que o Amor é, aqui, personificado. Esta personificação do Amor é típica da poesia do amor cortês, cantado pelos trovadores provençais.
Depois deste primeiro resumo, Francesca interrompe seu relato. Mas Dante, ainda que profundamente comovido – “o teu tormento até às lágrimas move o meu pesar” (vv. 116-117) – não se dá por satisfeito e deseja saber “dos suspiros no momento,/ com que e como concedeu-te amor/ do secreto desejo o entendimento” (vv. 118-120). Vendo o interesse do poeta, Francesca, apesar da dor que lhe traz a lembrança, aceita contar “la prima radice del nostro amor” (vv. 124-125). A próxima estrofe, que efetivamente conta o que ocorreu, se abre de maneira inesperada. Inicia-se com o verbo “ler”: “Noi leggiavamo un giorno per diletto di Lancialotto come amor lo strinse” (vv. 127-128, grifos nossos). O nome do cavaleiro mencionado, Lancelote, serve de indício do que estava por vir, uma vez que ele se envolveu com Ginevra, esposa do rei Artur. Trata-se, portanto, de uma narrativa rica em detalhes, já que conhecemos precisamente o assunto da leitura – o que significa que ele é relevante para os acontecimentos.
Ademais, logo ficamos sabendo que Francesca e Paolo estavam “sós, e sem qualquer receio” (v. 129). Em italiano, “soli eravamo e sanza alcun sospetto” (v. 129, grifos nossos). Ora, sem suspeita de quê? Há mais de uma interpretação possível aqui. Pode-se pensar que isso quer dizer que, por serem cunhados, eles podiam ficar a sós sem que isso levantasse nenhuma suspeita em ninguém. Uma segunda hipótese, talvez mais interessante, poderia avançar que eles estavam sozinhos sem que eles mesmos pudessem suspeitar, imaginar, as consequencias dramáticas daquela (não tão) inocente atividade de leitura. Este verso é importante porque a solidão favoreceu o erro que os perdeu.
À medida que avançavam na leitura, eles trocavam olhares. Aqui, cabe recordar que, desde a poesia grega arcaica, éros entrava pelos olhos. De fato, o olhar era, tanto na poesia lírica quanto épica, o sentido que era acometido em primeiro pela força de éros. O ponto que os venceu, contudo, foi o momento em que Ginevra e Lancelote se beijam: “Quando leggemo il disïato riso/ esser basciato da cotanto amante” (vv. 133-134). Aqui o sorriso, metonímia da boca, anuncia o beijo que, iniciado num livro, prolonga-se no outro. Pois a cena do beijo adúltero em Lancelote se alastra para a Commedia onde Paolo “tremendo, a boca me beijou no instante” (v. 136). O enlace sexual de Paolo e Francesca selado na intimidade do beijo imitado.
O realismo de tal cena é admirável. O adjetivo atribuído a Paolo é “tutto tremante”. A aliteração em “t” não só imita a tremedeira que acomete Paolo, como também reproduz toda a fragilidade daquele que é subjugado pelo Amor e não pode resistir, demonstrando a fraqueza do ser humano diante do amor carnal. Ao qualificar Paolo de “tremante”, o poeta dá à personagem uma figura concreta, material que ele, até então, não tinha. Observa-se, aliás, que a corporalidade da mulher, Francesca, não é sugerida em nenhum momento, ao passo que Paolo ganha corpo graças a este adjetivo. Quanto à primeira parte deste verso, considerado por alguns como um dos mais belos versos de amor de todos os tempos, ela também é digna de nota. Afinal, a aliteração em “b” que se ouve “la boca mi basciò” (v. 136) imita, por sua vez, o som do beijo em si.
Sabe-se então que “nesse dia não o lemos mais adiante” (v. 138). É com este verso, bastante sugestivo, que Francesca encerra, bruscamente, o seu relato, como que (inter-)rompido pelo sofrimento e pela violência da recordação. Sofrimento, este, que é reproduzida nos choro da “outra alma”, Paolo, ao passo que a violência do relato repercute na queda do próprio Dante que “como quem se esvai/ em morte, eu me esvaí de pena e dor,/ e caí como corpo morto cai”. A queda do poeta coincide com a queda desta trágica narrativa.
Agora que estabelecemos as grandes linhas do memorável relato de Francesca, é preciso deter-se mais um instante no papel crucial do livro e da leitura nesta história de amor adúltero. O verbo “ler” é repetido não menos que três vezes ao longo dos onze versos que compõem a narrativa de Francesca: “Líamos” (v. 127), “Ao lermos” (v. 133), “lemos” (v. 136). Nas duas primeiras ocorrências, ele aparece logo no início do verso, marcando sua importância: é o verbo mais importante daquela estrofe. Na última ocasião, aparece no último verso, também numa posição marcante. Mas o campo lexical da leitura não se limita ao ato de ler. Com efeito, o termo “leitura” aparece no verso 130, abrindo a segunda estrofe do relato. De modo que cada uma das quatro estrofes que contam a história de como Paolo e Francesca se apaixonaram conta com uma palavra relacionada à leitura.
Na última estrofe, surge também o “livro” que, no verso 137, é comparado a Galeoto personagem do romance de Lancelote, testemunha dos amores adúlteros entre o cavaleiro e a rainha Ginevra. Mas Galeoto não se limita a testemunhar, ele também o um meio para os amores ilícitos, como o de Ginevra e Lancelote. O que reforça, inclusive, a vocação sensualista do objeto livro e a paixão ganha corpo no corpo do livro. Assim, quando Francesca afirma que “Foi Galeoto o livro, e o seu autor” ela coloca o livro como testemunha de seu enlace amoroso (e ilícito) com o cunhado, mas também como parcialmente responsável por aquele beijo. O livro foi um impulso à queda.
Nota-se, em Francesca, o desejo de transferir a responsabilidade de seu ato para a leitura, o livro, e até mesmo o autor que o escreveu. Ocorre que a culpa é menos do autor do que do leitor. Ou, no caso, dos leitores, Paolo e Francesca, que não souberam distinguir a vida da matéria lida. Tal qual Dom Quichote, o casal confunde a ficção dos romances de cavalaria com a realidade e procuram concretizá-la. Assim, o episódio de Paolo e Francesca não adverte somente contra os perigos de uma leitura mal feita.
Além da reação – equivocada – de Paolo e Francesca quando eles são vencidos pela cena do beijo (o que mostra toda a força da literatura), outros elementos sugerem que o casal não leia como se deve ler. Logo que começa a história, ficamos sabendo que eles liam “para recreio” – em italiano “per diletto” (v. 127) – o que indica que o propósito da leitura era o divertimento. E, de fato, os romances de cavalaria tinham, como principal função, a diversão. Esta era, portanto, a motivação inicial do casal. Em alguma medida, “Diletto” implica o prazer, ainda que este não seja carnal. Por outro lado, no final do relato, sabe-se que Paolo e Francesca abandonaram a leitura, trocando o recreio proporcionado pelo livro pelo prazer erótico provocado por ele. Ora, o fato deles não seguirem adiante na leitura comprova que ela era superficial – o que também explica o engano. Caso tivessem prosseguido, saberiam que o amor ilícito de Lancelote e Ginevra acaba com uma dupla conversão dos dois que se consacram à vida religiosa, trocando o amor profano pelo sagrado.
Como a história de Paolo e Francesca surge logo no canto V (faltam ainda cerca de 95 cantos para a conclusão da Commédia), podemos interpretar esta narrativa, tão trabalhada, como um aviso ao leitor, que deve ter cautela ao ler esta obra de Dante. Além disso, a clara referência a Lancelote é uma alusão ao amor cortês, retratado tanto na poesia trovadoresca provençal como no romance de cavalaria francês. Ora, Dante, assim como outros stilnuovisti, reage justamente contra a doutrina laica do amor cortês, representado por Lancelote.
Precisamente no canto V da Commédia, Dante se insere na tradição do Dolce Stil Nuovo citando seus mestres. Com efeito, Dante introduz, no relato de Francesca, duas citações quase literais. A primeira, no verso 100: “Amor que alma gentil pronto apreende”. Em sua versão original – “Amor, ch’al cor gentil ratto s’apprende” (v. 100, grifos nossos) – este verso é uma clara alusão ao incipit da canção de Guido Guinizelli, poeta do Dolce Stil Nuovo, de quem Dante considerava-se um discípulo e cujo verso dizia: “Foco d’amor in gentil cor s’aprende” (grifos nossos). Na repetição das palavras “amor”, “cor gentil” e “apprendre”, ecoa o verso de Guinizelli, um dos mestres de Dante. Esta, contudo, não é a única citação presente na fala de Francesca. Quando ela retoma seu relato e diz: “Nessun maggior dolore” (v. 121) transcreve quase que literalmente Boezia, outro autor caro a Dante.
Com estas citações, Dante não só se inscreve numa tradição de poetas do Dolce Stil Nuovo, como também adverte que a história contada ultrapassa a esfera privada. Ela tem um âmbito mais vasto, é, pode-se dizer, universal porque tange à humanidade, diz respeito ao gênero humano como um todo e não apenas de um caso particular porque trata da condição humana sujeita à tentação e ao erro. É, inclusive, por esta razão que Dante parece tão comovido tanto pela história de Paolo e Francesca quanto pelo seu trágico fim e sua danação. Dante – e o leitor por meio dele – se reconhece em Francesca. Por isso sente tamanha compaixão – ou, melhor dizendo, empatia.
Podemos concluir que Francesca, personagem central do Canto V do Inferno, tem uma posição privilegiada na Divina Comédia. Ela não só é dotada de uma voz e de um discurso reproduzido em primeira pessoa, como é a primeira personagem a contar sua história na Commédia. Esta história, inspirada num trágico fait-divers contemporâneo a Dante, lhe permite abordar o tema das paixões, caro à Literatura. Mas a narrativa de Francesca vai além da advertência aos luxuriosos. Por meio dela, Dante adverte seu leitor dos perigos de uma leitura mal feita e se posiciona como um autor inserido na tradição literária do Dolce Stil Nuovo. Para sempre imortalizados, Paolo e Francesca não encarnam somente o casal adúltero, como também os maus-leitores, que precederam Madame Bovary e, assim como ela, não souberam distinguir a vida e a leitura. Talvez seja este, afinal, o seu maior pecado.