O Novo romance francês : Butor

Em seu romance A Modificação, Michel Butor pode resumir-se da seguinte maneira: “La modification é o retrato psicológico de um homem que faz, num trem, o percurso de Paris a Roma.” (PERRONE-MOISES, 1966, p.41). León Delmont viaja a Roma para comunicar à sua amante sua decisão recém-tomada de separar-se da esposa, com o intuito de convidá-la a mudar-se para Paris.

Porém, conforme o trem se aproxima de Roma, as reminiscências da personagem o levam a questionar sua intenção inicial. À medida que o percurso do trem o afasta de Paris e de sua esposa e a distancia que o aproxima de sua amante diminui, seu desejo se modifica, cristalizando-se sob a forma de um projeto de livro. « Il me faudrait écrire un livre; ce serait pour moi le moyen de combler le vide» (BUTOR, 2012, pp. 271-272), pensa o narrador que pretende « montrer dans ce livre le rôle que peut jouer Rome dans la vie d’un homme à Paris » (BUTOR, 2012, p. 278). Ora, a semelhança entre o projeto literário de Léon Delmont e o romance que o leitor acaba de ler pode levar a crer que o que foi lido, foi escrito pelo protagonista

Esta suspeita se acentua pela ambiguidade da frase seguinte « ce livre futur et nécessaire dont vous tenez la forme dans les mains » (BUTOR, 2012, p. 283). A ambivalência da frase reside no emprego do narrador em segunda pessoa do plural “vous”. Afinal, a história toda é narrada na segunda pessoa do plural, o que significa que a personagem relata sua vida íntima usando o “vous”. Esta escolha de foco narrativa indica que a personagem é mantida como eixo referencial e também transforma o leitor em um duplo do narrador. Assim, o leitor não tem como saber se a expressão “vous tenez la forme dans les mains” refere-se às mãos da personagem ou às suas próprias mãos. Sabe-se que ambos seguram o objeto livro em suas mãos, o que ressalta a ambiguidade da frase. 

Vale lembrar que Michel Butor é representativo do Novo Romance francês, no qual a linguagem é concebida como escritura e não apenas um veículo comunicativo. Por esta razão, a fábula é diluída ao mínimo enquanto prevalece a imagem, a forma literária. O teórico Jean Ricardou afirma que « Le roman n’est plus l’écriture d’une aventure mais l’aventure d’une écriture » (RICARDOU, 1967, p. 111).

O novo romance francês da segunda metade do século XX, também conhecido como a “escola do olhar”, defende a “apreensão do mundo pelo sentido da visão” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 20). Contudo, a noção de uma realidade que pudesse ser absoluta se tornou utópica ao longo do século XX: “esses romancistas reconhecem no real várias camadas” (1966, p.18), assinala Leyla Perrone-Moisés em seu livro de ensaios sobre o novo romance francês. 

Segundo a crítica brasileira, o romance é “o domínio do fenomenológico por excelência”, um instrumento no qual se pode “estudar de que modo a realidade nos aparece” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p.19). Com efeito, os novos romancistas se preocupam em buscar uma nova forma de escrever a realidade em termos de subjetividade, e não mais de objetividade. Esses autores questionam, portanto, o narrador realista tradicional usando o próprio romance como instrumento de reflexão e contestação, em busca de uma nova proposta literária que dê conta de uma realidade fragmentada, não mais totalitária.

Em seu ensaio, “Michel Butor, ordenador do real”, Leyla Perrone-Moisés interpreta de diversas maneiras o emprego do narrador em segunda pessoa do plural no romance A Modificação. Após notar que o “vous”, segunda pessoa do plural em francês, “corresponde à nossa terceira pessoa do singular” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 42), a autora analisa que “o emprego do “vous” dá ainda à narrativa um tom moralista, como quando se diz a alguém: “se você fizer isto acontecerá aquilo” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 43). A crítica ressalta ainda que “a segunda pessoa foi usada por La Fontaine em algumas fábulas, com este valor didático” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 43).

Esta comparação é interessante, uma vez que Walter Benjamin já assinalava dimensão utilitária das narrativas, em seu célebre ensaio intitulado “O Narrador”. Segundo Benjamin, o narrador dá conselhos tecidos “na substância viva da existência: a sabedoria – o lado épico da verdade” (BENJAMIN, ano, p. 200). Para tanto, deve recorrer ao acervo de toda uma vida usando, por vezes, a experiência alheia. Ora, o narrador de A Modificação insere em sua narrativa verdades universais – sabedoria coletiva – que se assemelham às máximas de escritores moralistas. 

Leyla Perrone-Moises nota que Michel Butor empenha-se no estudo do comportamento humano, identificando dentre “os “novos-romancistas” [como] o que mais se coloca na linha da tradição literária francesa” em que sempre predominaram os humanistas e os moralistas” (PERRONE-MOISES, 1966, p.37).

Os novos romancistas criticavam a forma como o romance tradicional reproduz os pensamentos das personagens, alegando que a mente não opera de modo tão ordenado. Michel Butor busca reproduzir uma linha de pensamento íntima, “respeitando simplesmente o mecanismo das associações, segundo o qual os fatos ressurgem e são mais ou menos ampliados segundo o eco que tiveram na sensibilidade do indivíduo” (PERRONE-MOISES, 1966, p.19). 

As reminiscências e reflexões tecidas pela personagem imitam a verdade psicológica, fazendo com que o fio da narrativa pareça descosturado. Contudo, Jean Ricardou mostra que Michel Butor escreve segundo uma rigorosa estrutura de oscilação dos tempos: o passado recente com Henriette e Cécile, o passado distante que relata o início do casamento com Henriette, o passado que retrata o encontro com Cécile, o futuro próximo que “é como que recordado em um futuro ainda mais avançado, de modo que não existe um presente fixo, mas um tempo com perpétuo movimento” (PERRONE-MOISES, 1966, p.42). Em seu ensaio “O narrador”, Walter Benjamin afirma que “somente no romance ocorre uma reminiscência criadora” (BENJAMIN, p.212).

Para justificar seu argumento, o filósofo cita um trecho de Georg Lukáçs segundo o qual “o sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida  […] na corrente vital de seu passado resumido na reminiscência” (BENJAMIN, p.212). Parece ser de fato o que ocorre com a personagem principal de A Modificação, em plena crise existencial, que, por meio das reminiscências de sua história sentimental, supera a dualidade da vida simbolizada pela esposa Henriette e a amante Cécile. A verdadeira modificação não é a troca da esposa pela amante, mas a substituição das mulheres pela escritura, ato unificador

O nome da esposa de Léon Delmont é digno de nota, já que Henriette é uma heroína de Honoré de Balzac. No romance O Lírio no vale, Felix de Vandenesse apaixona-se por Henriette, prisioneira de um casamento infeliz e mãe de filhos fracos e doentes. Para expressar seu sentimento amoroso, Felix lhe traz buquês de flores, e assim, Henriette “renasce na primavera depois de ter murchado no inverno”.

A atmosfera de Paris em A Modificação é invernal: a estação é chuvosa e cinzenta, o casamento com Henriette é infeliz a despeito dos quatro filhos do casal. Assim, em mais de um aspecto, a heroína balzaquiana ecoa no nome da personagem de Michel Butor, o que poderia indicar uma relação com o precursor do romance moderno na França

De acordo com Leyla Perrone-Moisés “este romance se coloca na linha da tradição romanesca francesa, sendo uma renovação das fórmulas de Balzac de Proust (PERRONE-MOISES, 1966, p. 42). Para a crítica literária, Butor herda de Balzac “o desígnio obstinado de recriar o mundo exterior em sua totalidade. (PERRONE-MOISES, 1966, p. 42). Nota-se, no decorrer do século XIX, que “o romance vai transformar-se num gênero totalizador e totalitário” (PERRONE-MOISÉS, 2014, p. 21).

Para Balzac a descrição é « l’un des instruments nécessaires au projet realiste de peinture totale d’une société d’une époque » (TADIÉ, 2007, p. 466). Michel Butor retoma as longas descrições balzaquianas com uma minúcia que se aproxima da objetividade almejada pelo romance realista do século passado. Por outro lado, a ambição compositora de Balzac encontra-se na preocupação ordenadora que rege o mundo romanesco de Michel Butor.A Modificação obedece a uma lógica construtora rigorosa e, se considerarmos que o romance que acabamos de ler é o livro escrito por Léon Delmont, a estrutura da obra é circular. Jean-Yves Tadié explica que a obra dita fechada tem uma « structure close: um ensemble circulaire qui se referme sur lui-même, dont la fin reprend le commencement » (TADIÉ, 1990, p.90). Nesta perspectiva, A Modificação de Michel Butor seria uma obra em ring-composition que, através uma estrutura rigorosa que simula um fluxo de pensamento espontâneo, propõe uma modificação do próprio gênero romanesco.

SAMUEL BECKETT: A LINGUAGEM EM CHEQUE

Por Thaïs Chauvel, Mestra Doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo – USP

A obra de Samuel Beckett é tão vasta quanto variada: passando do romance ao drama, sem esquecer das peças televisivas e radiofônicas, é evidente que esta obra original busca, se não abolir, ao menos abalar a divisão de gêneros tradicional. Ademais, enquanto seus escritos de juventude buscavam parodiar a literatura canônica ocidental, em especial a mímese caraterística do romance realista do século XIX, suas obras tardias desenvolvem uma linguagem original próxima à experimentação que evidencia o descompasso existente entre a capacidade – falha – de percepção do mundo e seu modo – insatisfatório – de dizê-lo e representá-lo. Por conta disso, o narrador beckettiano da última fase, constantemente colocado sob o signo da desconfiança, reflete a respeito da realidade e da imaginação ao mesmo tempo que duvida de sua própria existência.

É dentro desta perspectiva que propomos uma breve reflexão sobre Companhia, de 1980, e a miniatura dramática “Improviso de Ohio”, de 1981. Tendo em vista que o texto em prosa intitulado Companhia já foi encenado por Pierre Chabert e o renomado crítico beckettiano S.E. Gontarski, pretende-se refletir, num primeiro momento, sobre o tratamento genérico de ambas as obras: enquanto a primeira apresenta um potencial performativo, a segunda, embora pertença ao gênero teatral, não apresenta sequer um diálogo, motor dramático do teatro ocidental desde a antiguidade clássica. Num segundo momento, propõe-se apontar para as recorrências temáticas destas duas obras representativas da fase final de Beckett.

O texto em prosa intitulado Companhia é constituído por 58 parágrafos nos quais desenvolve-se uma espécie de “pas-de-deux pronominal” segundo a denominação de S.E. Gontarski. Com efeito, nota-se a disputa entre a segunda e a terceira pessoa do singular – ora, o embate dialógico não seria a condição mínima para a teatralidade clássica? De modo a representar o modo poroso da comunicação, a voz cinde-se em muitos narradores “dividindo sua voz em instâncias em conflito, conferindo força dramática, portanto, a suas incertezas e espessura cênica aos processos de enunciação” (ANDRADE, 2011, p.10). De fato, a teatralização do processo narrativo ainda se dá pelo modo como a voz autoritária em terceira pessoa fala à pessoa deitada no chão como se lhe passasse as rubricas de uma peça: “ você agora deitado de costas no escuro não irá erguer-se de novo para apertar as pernas com os braços e abaixar a cabeça até não poder abaixa-la mais” (BECKETT, 2011, p. 62). 

A pedra basilar do processo de enunciação de Companhia é o interdito original do uso da primeira pessoa que se dissolve na segunda e terceira pessoa. É notável “a discrepância de tom, de modalidade afetiva, entre a passagem em regime de segunda pessoa e aquelas em terceira, em que o corpo deitado é descrito pelo narrador” (ANDRADE, 2011, p. 13). Com efeito, enquanto a terceira pessoa é austera e obcecada pela verificabilidade de suas constatações, a segunda pessoa traz relatos líricos de uma vivência. Dessa forma, a ruptura dos gêneros em Companhia “combina ficção, poesia e drama ao limite da quase indistinção” (ANDRADE, 2011,p. 8).

Algo semelhante ocorre no Improviso de Ohio, miniatura dramática que coloca em cena duas personagens o Lecteur e o Entendeur. Embora a peça tenha duas personagens, não se estabelece um diálogo falado entre elas já que o Lecteur é o único a se expressar em voz alta. Não se trata, porém de uma comunicação espontânea, já que, como indica o próprio nome da personagem, sua função não é criar uma fala, mas ler o que está escrito em um livro. Seu interlocutor, o Entendeur, por sua vez, comunica-se apenas com as mãos, fazendo “toc” cada vez que quer interromper a leitura. Este método de comunicação revela-se eficaz, uma vez que o Lecteur suspende sua fala e retoma a leitura repetindo as últimas orações. Assim, pode-se dizer que a peça Improviso de Ohio aproxima-se de uma narrativa, afinal, apesar de contar com duas personagens bem caracterizadas num palco, ela apresenta um monólogo que é, na realidade, a leitura de um texto em prosa do gênero narrativo, e não de uma peça de teatro clássica. Sendo assim, tanto em Companhia quanto no Improviso de Ohio, as fronteiras se tornam indistintas e nebulosas entre os três gêneros tradicionais: o épico, o drama e o lírico. 

De um ponto de vista formal, cabe ressaltar aqui algumas inovações dignas de um autor experimental como Beckett: a novidade formal dos dramatículos como O Improviso de Ohio (escrito a pedido do crítico S.E. Gontarski na ocasião de um colóquio) e também da chamada “última pessoa narrativa” de Companhia. Tais inovações formais contribuem para a experimentação de uma linguagem original, única, fragmentada, que caminha em direção a uma literatura da despalavra, concisa e, no entanto, repleta de repetições. Assim, o Leitor deve concluir o Improviso de Ohio com a seguinte colocação: “il ne reste rien a dire” (BECKETT, p. 67), que ele repete duas vezes seguidas. Com efeito, a ansiedade da “última pessoa narrativa” de Companhia ante a dificuldade de narrar faz com que as vozes narrativas tenham um receio de concisão e minúcia de descrição e, paralelamente, uma insistência, quase involuntária, nas repetições. Do mesmo modo, o Leitor do Improviso de Ohio repete-se com muita frequência: “Ainsi la triste histoire […] Ainsi la triste histoire une dernière fois redite […]” ao mesmo tempo em que insiste que “il reste peu à dire”. O próprio conteúdo da fábula contada pelo Leitor remete a essa literatura da despalavra, pois tudo é “sans jamais échanger un mot” (“sem jamais trocar uma palavras” – tradução nossa). 

Ambos os textos comentados se estruturam, portanto, em torno da tensão entre a ameaça do silêncio e o excesso de repetições. Ora, não se poderia considerar que a repetição, na medida em que ela repete sempre algo que já foi dito, tem algo de silencioso em sua pronúncia? Em sua obra intitulada Unwording the world, a crítica Carla Locatelli argumenta que a “compulsion to repeat” (LOCATELLI, 1990, p. 124) – identificada com insistência em ambas as obras analisadas aqui – constitui “a mouvement that struggels against conceptualization and mimetic representation” (LOCATELLI, 1990, p. 122). Neste ponto, convém ainda esclarecer que as peças finais de Beckett exploram o desafio da representação evidenciando “the fact that life cannot be re-produced” (LOCATELLI, 1990, p.116).

É verdade que a dificuldade (ou impossibilidade?) de representação do mundo não é um tema novo na obra beckettiana, desde os anos 1930, que parodia o romance realista europeu do século XIX. No entanto, a última fase de Beckett não reflete apenas sobre a representação mimética do mundo, mas se interessa nos mecanismos da imaginação antes da cristalização da imagem. Ou seja, em sua obra final, o autor irlandês busca compreender qual é o lugar da imaginação no processo de pensar e apreender o mundo, e, por extensão, mensurar a importância da leitura e da escrita. De alguma maneira, tanto Companhia quanto o Improviso de Ohio parecem se colocar, ainda que de maneiras diferentes, a mesma questão, a saber: qual é o papel da Arte? 

Companhia apresenta o drama da imaginação buscando manter um contorno estável, apesar da cisão de vozes mencionada acima. A fragmentação do narrador em múltiplas vozes narrativas corresponde a uma crise do sujeito. A diluição da primeira pessoa em uma multiplicidade de vozes – autor, narrador, personagem, leitor – que se confundem e o decorrente embate dessas vozes narrativas evidenciam que o indivíduo, enquanto aquilo que não se divide, constitui uma verdadeira impossibilidade para Beckett. Para ele, não há um “eu” bem estabelecido tal como retratado pelo narrador flaubertiano. Pode-se fixar na escrita apenas uma voz – fugidia, própria da oralidade – que desconfia de sua capacidade de narrar denunciando toda porosidade da linguagem e a consequente dificuldade de comunicação que resulta numa “hermenêutica da desconfiança” (ANDRADE, 2011, p. 8), constituinte de “um projeto cognitivo comum” da última fase beckettiana. 

De fato, não se pode confiar na “última pessoa narrativa” de Companhiainsegura a ponto de precisar do olhar legitimador do outro para convencer-se de sua própria existência. A tensão da narrativa reside na incerteza fundamental de que a pessoa deitada não sabe nem se a voz lhe é endereçada: a ameaça do silêncio que paira é pior do que a fala autoritária da voz. Seja como for, esta voz insidiosa procura convencer o ouvinte de que as histórias que conta são lembranças suas, mas sua memória falha não lhe permite concluir se tal afirmação é verdadeira ou falsa. No entanto, os leitores que conhecem a biografia do escritor, “notarão que estas memórias de extração (pseudo) biográfica são em última análise atribuíveis ao próprio Beckett” (ANDRADE, 2011, p.13).

Tanto em Companhia quanto no Improviso de Ohio, que alguns críticos interpretam como representação do relacionamento entre Samuel Beckett e James Joyce, é evidente a retomada de elementos biográficos nestes escritos, o que contribui para a confusão dos papéis narrador-escritor. No que diz respeito às personagens do Entendeur e do Lecteur do Improviso de Ohio, pode-se dizer que elas não se constroem como um duplo de fato no sentido tradicional do termo, uma vez que são funções complementares constituem um único ser cindido, num processo de cisão de voz análogo ao de Companhia

Acerca disso, vale notar ainda que, em um determinado momento de Companhia, a voz imagina um entendedor H e um ouvinte M, ambos lembram a dinâmica proposta pelas personagens-funções do Improviso de Ohio, que não constituem um “duplo” e sim um “único” composto de duas partes complementares. À voz autoritária em terceira pessoa, contrapõe-se a “segunda pessoa, traduzindo em palavras e cristalizando em imagens os resíduos da existência”. Essa voz lírica relata narrativas curtas: são quinze acontecimentos que, de modo análogo à primeira trilogia beckettiana (Molloy, Mallone morre e O inominável), não constituem eventos uma vez que não há um encadeamento dramático causal.

Vale notar que o estilo lírico dessas passagens específicas apresenta uma potencialidade conflitiva que proporciona uma forte dose de comoção, tanto na personagem quanto no leitor. Esses acontecimentos narrados contêm marcas históricas referenciais ancoradas a algo físico representando a concretude de um tempo firmado no passado. A memória, porém, é falha e tão incerta quanto a percepção. Uma vez que a memória opera como processo de edição, de re-articulação (re-member) das lembranças constitutivas do sujeito, o uso da memória em Companhia mergulha toda voz narrativa sob o signo da desconfiança. As fronteiras entre memória e ficção são erodidas ao longo pela multiplicidade de vozes narrativa num processo de fusão entre a fábula e memória: “a fabula de alguém fabulando de alguém com você no escuro” (BECKETT, 2011, p. 63).

O espaço de Companhia torna-se problemático, talvez por que esteja escuro e a percepção sensível continua sendo um meio – ainda que imperfeito – de apreensão e compreensão do mundo. A escuridão impossibilita o uso do sentido da visão, o que certamente contribui para o efeito de insegurança, identificando a personagem ao leitor, a quem caberia imaginar o espaço e as histórias narrados pela voz. Assim, a terceira pessoa austera “buscando estabelecer constatações de funcionamento inquestionáveis, leis e constantes de base” (ANDRADE, 2011, p. 13) oferece ao leitor-personagem uma descrição minuciosa, porém cambiante, do espaço, alternado com frequência. Assim, um dos acontecimentos traz a descrição meticulosa de um caramanchão, “um hexaedro rústico, de madeira” de dois metros de diâmetro e três de altura, sem esquecer o formato das “pequenas vidraças coloridas em forma de losango” (BECKETT, 2011, p.47).  O texto se dá segundo um contraste entre a escuridão do momento presente sombrio e a luz morrendo no entardecer, a chama, a “lueur”, a “shade of light”, dos quinze episódios que narram acontecimentos, numa dinâmica que lembra a técnica renascentista do chiaroscuro.

A linguagem problematizada em Companhia e no Improviso de Ohio  torna-se um tema da obra final beckettiana. Embora a forma seja inteligível, ela é duvidosa. A materialidade da palavra torna a abstração impossível, no entanto, sua substância é porosa. Esta fase de Beckett é uma fase de descontrução que evidencia o processo de erosão da linguagem e da impossibilidade comunicação que, em ambos os casos conclui-se com o silêncio. Nesta solidão, o “Inventor, inventado inventando isso tudo por Companhia” (BECKETT, 2011, p. 52), a imaginação permite multiplicar as vozes criando uma ilusão de não solidão. Assim, o sujeito depende o olhar legitimador do outro para ter consciência de sua própria existência. Da mesma forma, as personagens do Improviso de Ohio estão “together alone”, sozinhos juntos, e a leitura também opera como um modo de confirmação da existência e a fábula proporcionada pela leitura constitui uma forma de companhia.  

BIBLIOGRAFIA:

ANDRADE, F.S. “In terra Samuelis” In: Samuel Beckett : o silêncio possível. São Paulo: Ateliê, 2001.

BECKETT, S. Company/Compagnie and a Piece of monologue/Solo. New Yord and London: Garland Publishing, 1993.

___________. Companhia e outros textos. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Editora Globo, 2012.

___________. “Impromptu d’Ohio” In: Catastrophe et autres dramaticules. Paris : Éditions de Minuit, 2011.

BENVENISTE, E. « Catégories de pensée et catégories de langues » In Problèmes de linguistique générale I, Paris : Gallimard, 1966, pp. 63- 74.

BLANCHOT, M. « Onde agora ? Quem agora ? » In: O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 308-318.

GONTARSKI, S.E. “Company for Company: Androgyny and Theatricality in Samuel Beckett’s prose” In: ACHESON, J. and ARTHUR, K. Beckett’s later fiction and Drama. Texts for Company. NewYork : St. Martin’s Press, 1987, pp. 193-202.

LOCATELLI, C. Unwording the world, Samuel Beckett’s prose works after the Nobel Prize. Philadelphia : University of Pennsylvania Press, 1990.

Sobre André Gide e Os moedeiros falsos (1925)

Por Thaïs Chauvel,Mª e Doutoranda em Letras da USP

Os moedeiros falsos, de André Gide, inicia-se com a promessa de um romance de formação: o jovem Bernard acaba de descobrir que é um filho bastardo e decide fugir de casa. Contudo, um elemento indica que a narrativa visa parodiar o bindungsroman: ao invés da tradicional lágrima de emoção, é uma gota de suor que escorre de seu rosto. Este detalhe ironiza as tradicionais narrativas de aprendizagem ao banalizar o drama pessoal do rapaz. A ironia consiste em oferecer um conteúdo que parece ser favorável “aux idées, aux personnages, au style que la forme ou l’énonciation de ce discours détruit” (TADIÉ, 1990, p.28). A lágrima de suor representa uma audácia formal por parte de Gide uma vez que exagera uma das convenções de um determinado gênero literário – a lágrima no romance de formação – colocando em questão o texto preexistente, o modelo do romance familiar tradicional. « Le XXème siècle n’a pas inventé l’ironie, mais il n’y a plus de grand roman sans une énonciation ironique qui le porte : tout est ironie » (TADIÉ, 1990, p.25), assinala Jean-Yves Tadié.


A ironia de Gide consiste em reproduzir o modelo realista que ele pretende desafiar frustrando a expectativa do leitor com relação à escolha do gênero. Dessa forma, o que prometia ser o romance de formação de Bernard, é também a história da elaboração do romance de Edouard, da gravidez de Laura, da relação de Vincent com Lady Griffith, de Passavant com Olivier, do pensionato dos Azaïs, do sucídio de Boris e assim por diante. Jean-Yves Tadié observa que o romance de Gide é « finalement moins un roman que le canevas de nombreux romans possibles » (TADIÉ, 2007,p. 638). Com efeito, cinco ou seis intrigas permeiam o romance, que anuncia histórias embrionárias que não serão desenvolvidas no desenrolar da obra.


Dentro desta perspectiva, o próprio romance de Gide poderia ser tomado como uma moeda falsa, que aparenta afiliar-se a um gênero, embora não reproduza suas convenções literárias. O narrador gidiano soa falso porque, a principio, parece ser um narrador onisciente tradicional, mas logo sua onisciência se revela falha: “Je ne sais pas trop où il dîna ce soir, ni même s’il dîna du tout”. Esta indecisão por parte do narrador constitui uma audácia formal de Gide com relação ao narrador teocêntrico – onisciente e onipotente – forjado no modelo realista. Acostumado ao romance tradicional, o leitor que espera poder se fiar na palavra do narrador gidiano tem suas expectativas frustradas e é forçado “a sair de sua passividade e de sua sujeição” (CAMPOS, 2006, p. 37).


O narrador gidiano também avalia o caráter de suas personagens, como no trecho a seguir: « On pourrait croire, à ce dialogue, ces enfants encore plus dépravés qu’ils ne sont. C’est surtout pour se donner des airs qu’ils parlent ainsi, j’en suis sûr » (GIDE, 2012, p. 281). Ora, este comentário de cunho moralista desvela uma insuficiência do narrador que contradiz a lógica teocêntrica do narrador tradicional. Ao acrescentar a oração «j’en suis sûr», expressão que supostamente deveria passar alguma segurança ao leitor, o narrador ironicamente revela não ter absoluta certeza no que afirma. Não se trata de uma afirmação, mas de uma opinião pessoal acerca do comportamento das personagens que leva o leitor “a desconfiar do narrador, já que a ficção não pode ser verificada na realidade” (CAMPOS, 2006, p. 34). Ao contrário do narrador “teocêntrico” balzaquiano, o narrador gidiano “não é mais garantia de veracidade e anula-se o pacto implícito que o liga ao leitor” (CAMPOS, 2006, p. 34).


Além de tecer verdades universais como « Les préjugés sont les pilotis de la civilisation » (GIDE, 2012, p. 19), o autor de Os Moedeiros falsos inclui uma máxima de La Rochefoucauld “Il arrive quelquefois des accidents dans la vie d’où il faut être un peu fou pour bien se tirer” (GIDE, 2012, p. 138) como epígrafe do capítulo 14 da Primeira parte do romance. O narrador gidiano ainda se permite aconselhar suas personagens, comentando suas ações e dizendo como deveriam agir: «J’espérais d’Olivier qu’il aurait mieux su s’en défendre [de Passavant]; mais il est de nature tendre et sensible à la flatterie» (GIDE, 2012, p. 244). Ora, de acordo com Walter Benjamin “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (BEJAMIN, 1985, p.200).


As palavras também podem ser lidas como moedas falsas, por exemplo, quando o narrador exprime dúvidas quanto à justeza de determinados termos empregados: « J’ai dit qu’ils ne se parlaient pas beaucoup; une sorte de contrainte étrange inexplicable […](je n’aime pas ce mot « inexplicable », et ne l’écris ici que par insufisance provisoire) » (GIDE, 2012, p. 237). Neste trecho, o narrador relata suas inseguranças, explicitando sua “insuficiência” de modo a perturbar o público acostumado ao romance tradicional. Primeiro, porque o narrador parece incapaz de “explicar” o que impede Bernard e Edouard de se falarem normalmente. Depois, porque a insegurança do narrador com relação à palavra empregada o obriga a interrogar o valor do adjetivo “inexplicable”. Assim, André Gide sugere que “a literatura não impõe um sentido, vive mais por causa de seus questionamentos do que por suas respostas” (CAMPOS, 2006, p.37).


O crítico Erich Auerbach observa « le cas d’André Gide qui, dans Les Faux-monnayeurs, modifie constamment le point de vue à partir duquel les événements (déjà compliqués en eux-mêmes) sont appréhendés » (AUERBACH, 1977, p.540), analisando que este autor abandona o ponto de vista da objetividade em prol de uma perspectiva mais variada que mostre o real «dans la discontinuité » (AUERBACH, 1977, p. 540). Com efeito, este único romance de Gide reúne dois focos de luz: “há um narrador, testemunha anônima que circula como uma sombra no romance, enquanto o segundo foco, formado pelo Diário de Edouard, […] uma outra narração complementar da primeira.” (CAMPOS, 2006, p.31). A transcrição de trechos do diário de uma das personagens do romance permite ao autor evitar o uso excessivo do narrador onisciente e oferece à narrativa pontos de vista “complementares, mas também concorrentes”, já que ambas podem narrar um mesmo acontecimento através de perspectivas distintas. De acordo com Regina Salgado Campos, a multiplicidade de pontos de vista se identifica ainda na quantidade de cartas citadas no romance (10) e nos monólogos interiores das personagens. O entrelaçamento de diversas vozes narrativas revela que a versão está ao alcance, não a verdade.


“O processo de desmascaramento do autor onisciente torna-se explícito no capítulo em que encontramos a personagem “autor” (capítulo sete da Segunda parte)” (CAMPOS, 2006, p. 35). Com efeito, este capítulo suspende a narrativa e comenta o desenrolar da intriga desintegrando a ilusão romanesca da verossimilhança. Afirma-se que « Bernard est assurément beaucoup trop jeune encore pour prendre la direction d’une intrigue » (GIDE, 2012, p. 242), confirmando a suspeita de que o incipit tradicional do romance era uma trapaça, já que não se trata de um romance de formação. Além disso, ao fazer a seguinte confissão: «je crains qu’en confiant le petit Boris aux Azaïs, Édouard ne commette une imprudence» (GIDE, 2012, p. 241), o “autor” revela que desconhece a progressão de sua própria obra, opondo-se ao modelo de “autor” tradicional que “por princípio deve saber o que vai acontecer em seguida” (CAMPOS, 2006, p.35). Vale notar que o emprego do subjuntivo indica dúvida, dando a entender que o “autor” ignora as trágicas consequências que a escolha de Edouard irá desencadear.


Regina Salgado Campos interpreta “o jogo entre o narrador onisciente e o narrador explícito que faz que não sabe o que está acontecendo” como uma “demonstração” de que “tudo está relativizado” (CAMPOS, 2006, p. 36). A técnica da refração da realidade em uma multiplicidade de pontos de vista aliada à paródia do narrador onisciente são procedimentos narrativos colocados em obra por André Gide para advertir que “a impostura vence quando o autor se arroga o monopólio do poder e do saber, quando a narração visa a ilusão e a mistificação” (CAMPOS, 2006, p.37). Com efeito, a circulação de moedas falsas espalhadas no decorrer da narrativa: os romans de gare de Passavant, os filhos bastardos, a religião moralista, e justiça burguesa, ensinam ao leitor que não deve se fiar às aparências, nem mesmo a uma representação mimética da realidade. O romance moderno de André Gide questiona o romance realista como modo de representação do mundo e forma de autoconhecimento, uma vez que o gênero reflete apenas uma versão da realidade – a ideologia burguesa, que confunde ser e parecer, verdade e verossimilhança.


No capítulo 18 dos Moedeiros falsos, Edouard escreve que seu diário: « C’est le miroir qu’avec moi je promène ». Ora, sua colocação alude ao famoso aforismo de Stendhal « un roman est un miroir que l’on promène le long du chemin ». A metáfora do espelho foi utilizada com frequência no século XIX para definir a romance realista. A imagem coloca que refletir – nos dois sentidos do termo – é objetivo da representação romanesca. Sendo assim, o romance não deveria ser apenas o reflexo do mundo exterior, a partir da reconstituição imagética da realidade, mas deveria ainda tecer uma reflexão acerca desta realidade.

A metáfora do espelho se reencontra numa inovação narrativa proposta por André Gide: a mise en abyme. Este procedimento consiste em criar uma obra dentro da obra, como ocorre em Os Moedeiros falsos onde a personagem de “Edouard é romancista e tem como projeto escrever um romance também chamado Os moedeiros falsos” (CAMPOS, 2006, p. 32). Este mecanismo metalinguístico coloca o romance não somente como espelho do mundo social, mas também (e principalmente) do próprio gênero romanesco. O dispositivo de auto-referencialidade da escrita permite criar uma “obra que é ao mesmo tempo romance e meditação acerca do romance, de suas possibilidades como forma literária.” (PERRONE-MOISES, 1996, p. 29).


Os Moedeiros falsos também apresenta o mecanismo circular, chamado ring-composition, que consiste em terminar o romance no mesmo ponto em que começou. Dessa forma, o romance inicia-se com a fuga de Bernard e encerra-se com seu retorno a casa, onde o espera seu irmão Caloub, cujo nome pode ser um anagrama de “boucle”. Walter Benjamin estima que o final de um romance é a particularidade mais fundamental do gênero, uma vez que, ao contrário de uma narrativa, “o romance não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido da vida” (BENJAMIN, p.213). De acordo com Benjamin, “o sentido da vida somente se revela a partir de sua morte” (BENJAMIN, p.213), nem que seja a “morte no sentido figurado – o fim do romance” (BENJAMIN, p.213). Pode-se considerar que Gide convida o leitor a refletir ao final de seu romances Les Faux-Monnayeurs.


Porém, mesmo não ocorre com romance de Edouard, que não chega ao fim. Além de notas teóricas, temos apenas um trecho transcrito no capítulo 15 da Terceira parte. Nesta ocasião, Edouard tenta dar uma lição de moral a Georges por meio da literatura, conferindo ao seu romance uma dimensão didática que contradiz sua teoria estética do romance “puro”. Além disso, o escritor resolve não incluir em sua obra a morte de Boris, argumentando que « Sans prétendre précisément rien expliquer, je voudrais n’offrir aucun fait sans une motivation suffisante. C’est pourquoi je ne me servirai pas pour mes Faux-Monnayeurs du suicide du petit Boris. » (GIDE, 2012, p. 417). De alguma maneira, quando Edouard se recusa a escrever sobre a morte de Boris, ele passa ao lado do sentido da vida – que é, segundo Benjamin, a finalidade do romance – condenando sua obra ao inachèvement – o inacabamento.

Alguns aspectos de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, de Leskov

Por Thaïs Chauvel, Mª e Doutoranda em Letras da USP

Nikolai Leskov foi um importante escritor russo, contemporâneo e amigo de Dostoiévski. É justamente sob a direção deste último que a revista Epokha publicou, em 1865, Lady Macbeth do distrito de Mtzensk (96 páginas). Nesta obra, Leskov cria uma atmosfera de tensão capaz de prender o leitor até a última página, logo veremos como ela se estabelece. Outro elemento interessante desta narrativa é o narrador, que possui algumas características que merecem ser observadas, afinal, seu modus operandi é, em parte, responsável pela beleza e particularidade desta admirável novela. A esse respeito, vale lembrar que Leskov tem uma forma tão peculiar de narrar histórias que o pensador alemão Walter Benjamin até lhe dedicou seu famoso ensaio: “O narrador”. 

O início de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk anuncia o tema sombrio da trama: “aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na alma sempre que nos lembramos deles” (p. 11), e antecipa que Catierina Lvovna protagonizou um “terrível drama”, razão pela qual foi apelidada “Lady Macbeth do distrito de Mtzensk”. No entanto, mesmo se a trama está anunciada no seu sentido mais amplo, não é o fato de Catierina Lvovna ser uma personagem assustadora, que realizou algo “terrível”, que realmente importa ao leitor. O que o interessa é como isto ocorreu. Nas palavras de Cortázar: “sente-se de imediato que os fatos em si carecem de importância, que tudo o que interessa está nas forças que o desencadearam, na malha sutil que os precedeu e os acompanha.” (CORTÁZAR, 1999, p. 358). E é exatamente o que acontece com Lady Macbeth do distrito de Mtzensk. Muito embora seja dito logo no primeiro parágrafo que Catierina é uma Lady Macbeth digna deste nome, o leitor interessa-se mais pelo “como” ela mereceu tal apelido. Com isso, a revelação do primeiro parágrafo serve para prender o leitor e suscitar sua curiosidade.

Já no parágrafo seguinte, o narrador descreve uma Catierina Lvovna que nada se parece com uma criminosa semelhante à Lady Macbeth, a perversa personagem imortalizada por Shakespeare. Pelo contrário, surge aos olhos do leitor, desconfiado, uma moça “de aparência muito simpática” que não corresponde de modo algum com a expectativa criada pelo narrador. Isso só contribui para atiçar ainda mais sua curiosidade e descobrir logo o que aconteceu para esta moça tornar-se perversa. Saber o que ela se tornará só aumenta a tensão que carrega o desenvolvimento da trama. O resto do primeiro capítulo caminha sem maiores explicações e “nos aproxima lentamente do que é contado”. Assim, o fato do leitor já conhecer o resultado final da história, apenas cria uma tensão maior, causada pela expectativa da transformação da personagem principal. Transformação esta que só começa de fato a aparecer no capítulo quinto, quando comete seu primeiro crime.

Outros elementos que aparecem no desenrolar da trama aumentam o suspense e a tensão da narrativa. O final de alguns capítulos são extremamente carregados de tensão, como o final do capítulo quarto: “ Foi assim que Borís Timofiêtch decidiu; só que esta sua decisão não se realizou.” (p. 24). Esta afirmação antecipa que algo aconteceu com Borís Timofiêtch que o impediu de concretizar seu plano. O que será que houve? O título e a abertura da novela já entregam o fato de que Catierina Lvovna se torna uma mulher cruel, será que foi ela que impediu a decisão de se concretizar? 

Além disso, não são poucas as frases que soam de maneira profética. No sexto capítulo, Catierina Lvovna diz para Serguiêi: “ se tu me trocares por outra qualquer, seja ela quem for, aí, meu amiguinho do peito, me desculpa, porque com vida não vou me separar de você” (p. 32), este comentário é dito de tal forma que parece uma premoniação na medida em que o leitor fica na expectativa de que isso venha a acontecer. Lady Macbeth do distrito de Mtzensk é uma obra de tensão na qual o narrador antecipa elementos com o intuito de deixar o leitor na expectativa da realização de algo temeroso. A tensão é um dos elementos essenciais da narrativa Lady Macbeth do distrito de Mtzensk. Outro aspecto muito importante é o narrador, e seu ponto de vista peculiar. 

O narrador de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk é alguém, isto é, uma pessoa inserida numa comunidade. O que fica claro pelo uso da primeira pessoa do plural: “nossas paragens” “nossa nobreza” (p. 11). No entanto, ele não é testemunha, nem personagem da história, ele é onisciente e externo à trama. Seu status é onisciente, pois sabe de tudo, inclusive coisas que um simples observador não poderia deduzir como “Para ela não existia nem a luz nem a escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria, ela não compreendia nada, não amava ninguém, não amava a si mesma” (p. 65). Esta sentença comporta certos aspectos que Catierina Lvovna desconhece; ela acredita amar Serguiêi, não pensa não amar ninguém. Quem acha isso é o narrador que dá esta informação ao leitor.

Apesar de ser onisciente, o narrador desta obra não revela todo seu conhecimento aos olhos do leitor. Ele não passeia pela mente de todos os personagens e apenas fornece o ponto de vista de Catierina. Embora os estados mentais das demais personagens possam ser inferidos por meio das ações e do contexto, o leitor nunca tem um acesso direto à mente de Serguiêi, de Zinóvi Boríssitch, ou do sobrinho, por exemplo. 

 O ponto de vista de Catierina aparece ora no discurso indireto livre: “ela iria alegrar-se, Deus, como iria alegrar-se ao cuidar um pouco de uma criançinha” (p. 12), ora no discurso direto: “por que vou ter mesmo de ficar sem o capital por causa dele” (p. 11). Este narrador circula no nível mais superficial da mente de Catierina Lvovna, pois seu discurso é articulado e simples. Apesar de mostrar alguns acontecimentos pela perspectiva de Catierina Lvovna, o narrador utiliza seu ponto de vista em algumas ocasiões apenas, para nos manter afastados da personagem. De fato, o narrador tem uma predileção pela cena em si. Ele transmite a história ao leitor pelas palavras e ações das personagens. Elas falam e agem por elas mesmas, e o narrador raramente intervém para fornecer demais explicações. O próprio evento predomina, é o caso de: “Serguiêi nada respondeu. Os lábios de Serguiêi tremiam e ele mesmo estava tomado de febre. Só os lábios de Catierina Lvovna estavam frios.” (p. 47). É certo que esta cena é narrada com exatidão, mas como observou Walter Benjamin, o leitor é “livre para interpretar a história como quiser.” (BENJAMIN, 2008, p. 203).

Se o leitor é “livre para interpretar a história como quiser” é porque, segundo Walter Benjamin, “o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor”. O legítimo “racconteur” evita a análise psicológica das personagens e explicações. Em Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, o narrador não fornece uma análise psicológica de Catierina Lvovna, nem de Serguiêi, nem de nenhum personagem da trama. Suas motivações conhecidas são as que eles expõem, seja pela fala, seja por um comportamento denuncia uma intenção disfarçada, mas não porque tem acesso aos seus pensamentos. Ademais, este narrador não nos fornece explicação alguma, cabe ao leitor reunir os elementos esparsos na narrativa para encontrar possíveis respostas. Assim como o narrador apresentado no ensaio de Benjamin, o narrador de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk não explica, ele se contenta em cumprir sua função primordial: contar.

Isso se deve também ao fato do “racconteur” das antigas narrativas ser fonte de sabedoria. Em seu ensaio, Walter Benjamin opõe a sabedoria à informação, dizendo que o “racconteur” é o que transmite a sabedoria. A sabedoria aparece inclusive na forma de conselho tecido da experiência viva. De fato, a partir da matéria da narrativa, o narrador de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, chega a conclusões sobre o matrimônio e sobre a natureza humana. Por exemplo, no décimo quinto capítulo ele diz: “Aquele […] que não acalenta a idéia da morte […], mas a teme, esse precisa tentar abafar essas vozes ululantes com algo ainda mais horrendo que elas. Isso o homem simples compreende perfeitamente: então ele dá asas a toda a sua simplicidade animal […] torna-se excepcionalmente mau.” (p. 77). Aqui, o narrador tece um tipo de sabedoria que nasce da observação da existência.

Outros exemplos de sabedoria são os provérbios, muito presentes nesta narrativa. Se contar as canções, ao todo são cinco provérbios populares. A epígrafe da narrativa é um provérbio: “só coramos ao cantar a primeira canção” (p. 9), da mesma forma, Catierina Lvovna só “cora” ao cometer seu primeiro crime, os demais sequer a fazem corar. Esta epígrafe traz os provérbios como um elemento importante da narrativa. No capítulo décimo terceiro, aparece: “e o solzinho ainda “iluminava muito, mas não aquecia”, como diz o provérbio popular.” (p. 65). Logo no primeiro capítulo, “o tédio das casas de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar” (p. 13). São sabedorias populares que dizem respeito a uma coletividade específica e que refletem sobre aspectos práticos e do cotidiano. O narrador insere-se numa comunidade específica, com costumes, provérbios, e hábitos próprios, no décimo segundo capítulo ele diz: “nosso povo é religioso” (p. 61), segundo Walter Benjamin: “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo” (BENJAMIN, 2008, p. 214).

Para Walter Benjamin, a narração preserva a memória da coletividade, a história circula de geração em geração e sobrevive por ser contada e recontada. No primeiro parágrafo de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, o narrador se apresenta como quem vai contar um caso que aconteceu em sua região, no seio da sua comunidade: “mulher de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual, nossa nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chamá-la “Lady Macbeth do distrito de Mtzensk.” O fato ocorreu outrora e permanece na memória coletiva como uma história que suscita tremor. Além disso, o narrador apresenta marcas de oralidade ao longo da trama, no nono capítulo: “ e de repente, pimba” (p. 49) e “uma semana depois, zás” (p.49), no décimo primeiro: “pernas pra que te quero!” (p. 59), e no décimo quinto capítulo:“Rufa o tambor: tan-tanantan-tan” (p. 77) . Pimba e zás são interjeições próprias de quem está contando uma história usando a linguagem falada. Da mesma forma,  fazer o barulho do tambor, é um recurso utilizado por um contador oral.

O narrador também alterna os tempos verbais da narrativa de maneira insólita, presentificando vários momentos, aumentando assim o impacto que têm no leitor. O narrador alterna pretérito perfeito e presente em frases que se seguem, no sétimo capítulo, diz: “Serguiêi acordou, acalmou Catierina Lvovna e tornou a adormecer; mas o sono dela tinha ido todo embora e já não foi sem tempo.” (p. 37) e sua próxima frase é: “Está ela deitada, de olhos abertos, e de repente ouve algo” (p. 37). O presente é usado para fixar uma cena que vai ser importante, faz o leitor vivê-la como se de fato fosse o momento presente. Torna a narrativa mais viva e mais assustadora, diminuindo a distancia entre a história, o tempo, as personagens e o leitor. Estes recursos utilizado pelo narrador permitem recriar uma sensação de história contada oralmente a um grupo de pessoas. A característica principal do “racconteur” de Walter Benjamin é, precisamente, a oralidade. Assim, Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk é uma belíssima obra de tensão de tirar o fôlego, que reproduz um estilo próprio do antigo contador de histórias que relembra fatos curiosos ocorridos na sua comunidade e que os conta para transmitir sabedoria e sustentar a memória.

A história Francesca na Divina Comédia

Por Thaïs Chauvel, mestra em Letras e doutoranda USP

Quando evocamos Dante e o relancionamos a uma figura feminina, o primeiro nome de mulher que vem à mente costuma ser o de Beatrice, personagem emblemática da Divina Comédia. Há mais de 700 anos, é ela que convida Virgílio a guiar Dante, narrador-personagem, em sua viagem pelo Inferno e Purgatório e, quando este poeta latino –  e pagão – já não pode prosseguir a jornada pelo Paraíso, é ela, a própria Beatrice, que segue acompanhando o florentino. Presente, portanto, do início ao fim deste majetuoso poema que logo se transformou num clássico incontornável da literatura universal, não é de se espantar que o nome de Beatrice seja, de imediato, associado ao de Dante. Por mais que sua fama justificada, ela não é, contudo, a única figura feminina marcante da Divina Comédia. Há outra mulher, cujo nome é entoado por Dante no Canto V do Inferno: Francesca. Diamentralmente oposta a Beatrice – símbolo de pureza e virtude –, Francesca é uma pecadora cuja história comoveu, não só Dante, como gerações de leitores. É a esta mulher, que o poeta encontra no segundo círculo do Inferno pagando pelo pecado da luxúria, que este artigo se dedica.

Para tanto, é preciso analisar, primeiro, a estrutura deste famoso Canto V do Inferno, com foco na parte em que o casal composto por Francesca da Rimini e Paolo Malatesta aparece. Depois de lembrar que o assassinato deste casal foi um acontecimento marcante da juventude de Dante, observaremos algumas particularidades do diálogo entre o poeta e Francesca, a quem ele dá voz reproduzindo sua fala no discurso direto. Analisando, então, o relato no qual Francesca narra as circunstâncias que a levaram à danação eterna, mostraremos como o livro – e, por extensão, a literatura – é apontado como responsável pelos erros cometidos em vida.

No quinto Canto da Divina Comédia, Dante adentra o segundo círculo do Inferno onde se pune “a trangressão carnal, que desafia/ a razão e a submete a seu talante” (vv. 38-39). Note-se que o pecado da luxúria é descrito como aquele que acomete a razão, fazendo com que o indivíduo tome decisões inspirado pelas suas paixões e não mais de maneira sensata e racional.

Do verso 52 ao 69, Virgílio apresenta um catálogo de personagens fictícios e históricos que foram acometidos pela luxúria e que se econtram, portanto, neste segundo círculo do Inferno. Cabe lembrar que, embora ele mencione três homens – Aquiles, Páris e Tristão – nos últimos três versos de sua fala, Virgílio concentra a maior parte de sua exposição (12 versos) às mulheres: Semíramis, Dido, Cleópatra e Helena.

A primeira que ele descreve é a imperatriz Semíramis “por sua luxúria foi tão possuída/ que líbito fez lícito em sua lei,/ Pra escapar da censura merecida;” (vv. 55-57). Vale observar que o tema da lei, mais precisamente, da justiça humana aparece aqui intimamente relacionado à luxúria. Para tornar seu comportamento libidinoso aceitável, Semíramis, que detêm o poder, não hesita em alterar as leis com o intuito de “escapar da censura merecida”. Cumpre ressaltar ainda que a imperatriz lançou mão de seu livre arbítrio – ou seja, da sua liberdade de escolha – para efetuar as mudanças necessárias de modo que a lei por ela reformada considerasse sua libinagem legal. A questão do livre arbítrio é, vale lembrar, cara a Dante. A importância deste tema é evidenciada pela aliteração em “L” do verso no original: “che libito fé licito in sua legge” (v. 56), destacando-o dos demais. A semelhança entre os vocábulos “líbito” e “lícito”, nos quais uma única letra é alterada – o “b” sendo trocado por um “c” –, reforça a facilidade com a qual a Semíramis alterou a lei humana como melhor lhe convinha. Ora, se seu poder enquanto imperatriz permitiu-lhe usar o seu livre arbítrio para evitar as consequências legais de seus excessos, ele nada pôde contra o poder divino que a condenou a pagar eternamente pelo seu pecado. Por meio do exemplo de Semíramis, Dante demonstra que, embora a justiça humana seja falível, a justiça divina é invencível e implacável.

Logo em seguida, surge a figura literária de Dido, rainha de Cartago, esposa de Siqueu e também personagem-chave da Eneida, escrita pelo próprio Virgílio, também autor desta fala. O que se diz dela é relativamente sucinto: “Aquela outra é a que se matou, amorosa,/ rompendo o voto às cinzas de Siqueu;” (vv. 61-62). Seu suicídio após a partida de Eneias é enfatizado por Virgílio que era, no entanto, um poeta romano e pertencia, portanto, a uma cultura na qual o suicídio era louvável e não condenável como no catolicismo. Ainda assim, a Divina Comédia, bem como seu autor, é um poema católico que considera este crime abominável. Além disso, ao tirar sua própria vida, Dido também quebrou a promessa que havia feito a Siqueu. Sua moralidade é, dessa forma, questionável, não só porque se matou, mas também porque violou seu voto. Tudo isso, vale lembrar, por conta do amor incontrolável que sentia pelo troiano.

“Cleópatra após vem, luxuriosa.” (v. 63) é o breve comentário feito por Virgílio a respeito da rainha do Egito que seduziu os dois maiores generais romanos: Júlio César e Marco Antônio. E então, surge Helena de Esparta “por quem tanta ocorreu/ desgraça” (vv. 64-65), em referência à Guerra de Tróia, da qual é tida como responsável. Outro personagem mítico da Ilíada é citado logo em seguida: “o grande Aquiles, que ora vês,/ por amor combatendo pereceu.” (vv. 65-66). Nas figuras de Dido que se suicidou, de Helena que a morte de tantos o seu rapto causou, e de Aquiles que até o fim por vingança lutou, a proximidade de éros e thánatos é tangível, evidenciando que o amor carnal não raro leva à morte. O catálogo de Virgílio se encerra com uma simples menção a Páris e Tristão, sobre os quais não é preciso acresentar nada, já que Páris causou a queda de sua cidade e Tristão morreu de amor por Isolda. Nas referências a Páris, Helena e Tristão, evoca-se, de modo premonitório, as trágicas – e inevitáveis – consequências do amor adúltero.

Dante conclui, com a menção a Tristão, o catálogo de Virgílio, mas este continua enumerando personagens históricos e/ou literários já que o poeta afirma: “e, vez por vez/ mais de mil indicava-me, entretido,/ sombras a quem amor vida desfez.” (vv. 67-69). Enquanto contempla todas aquelas almas, vítimas do amor, um casal chama a atenção do poeta-personagem que deseja falar com aqueles “que unidos vão,/ e tão leves parecem ser ao vento” (vv. 74-75).

Até aquele ponto, Dante, nas palavras de Virgílio, havia enumerado personalidades imortalizadas pela História e pela Literatura com o intuito de lembrar os efeitos terríveis do amor. A partir deste momento, Dante vai imortalizar outro casal: Paolo Malatesta e Francesca da Rimini. Apenas o primeiro nome de Francesca é mencionado e ela é a única a falar enquanto Paolo só pode chorar. Note-se que, assim, o casal forma um todo complementar: ela fala, e ele chora. O modo como são retratados os coloca como uma unidade, o que os diferencia também das personagens evocadas no catálogo anterior. Aquelas eram citadas separadamente, nem mesmo o nome de Páris vinha acoplado ao de Helena e a menção a Tristão era individual. Todas aquelas sombras mencionadas iam, portanto, sozinhas. Não é o caso destas “che ‘nsieme vanno” (v. 74). A unidade deste casal é reforçada não só pela complementaridade das ações de cada um – a fala e a lágrima –, mas também pelo uso da primeira pessoa do plural. Com efeito, Francesca diz constantemente “nós”: “noi pregheremmo” (v. 92), “noi udiremo e parleremo” (v. 94), “Noi leggiavamo” (v.127). Num verso particularmente emocionante, Francesca declara: “Amor condusse noi ad una morte” (v.106). O que explica esta unicidade: é como se eles fossem uma única pessoa porque a mesma morte que os acometeu os uniu. 

É Francesca que conta, a pedido de Dante, a história deles dois –  o único casal representado enquanto casal neste Canto V. Quando o poeta diz: “Queste parole da lor ci fuor porte” (v.108, grifos nossos), ele confirma que tudo aquilo que ela diz se estende, de fato, aos dois. Sendo assim, Francesca é a porta-voz do casal e Paolo, silencioso, expressa, não por meio das palavras mas com suas lágrimas, todo o sofrimento que sua história em comum lhes causou. Há, de certo modo, uma inversão nos papéis masculinos e femininos, uma vez que, tradicionalmente, o choro é atribuído à mulher e a palavra é concedida ao homem. 

Mais notável ainda é o fato de que Francesca é a primeira personagem a contar sua história em primeira pessoa na Divina Comédia, o que lhe confere certa importância. Não obstante, quando Francesca decide relatar o que aconteceu, ela afirma: “eu contarei, como quem chora e diz.” (v. 126), colocando-se como contadora ativa e consciente. Se analisarmos este verso na versão original – “dirò come colui che piange e dice.” (v. 126) – notamos que Dante empregou aqui o verbo “dirò”. Cumpre ressaltar este mesmo verbo “dire” já havia sido empregado pelo próprio Dante – “dirò de l’altre cose ch’i’ v’ho scorte” (I, v. 9) – e também por Virgílio: “dirotti perch’io venni e quel ch’io ‘ntesi” (II, v. 50). Dessa forma, ao colocar o verbo “dirò” na boca de Francesca, Dante eleva sua fala que torna-se tão legítima quanto as palavras proferidas pelo próprio Dante ou Virgílio. Se, até aquele momento, as mulheres mencionadas no Canto V eram todas silenciosas, mulheres “di cui si legge” (v. 58), o discurso de Francesca surge aqui como um verdadeiro contraponto ao silêncio das demais luxuriosas, a quem a palavra é negada. Sendo assim, Francesca, uma simples mulher contemporânea de Dante, não é apenas comparada a personagens históricas e épicas lembradas nos versos precedentes, como é elevada acima delas, já que lhe é dada a palavra.

É interessante observar também que, embora o seu nome não tenha sido comunicado a Dante em nenhum momento do Canto, este lhe diz: “Francesca, o teu tormento até as lágrimas move o meu pesar” (vv. 116-117). Comentaremos o efeito que a história de Paolo e Francesca tem em Dante mais adiante, por ora, o que nos interessa é o uso deste vocativo, um tanto quanto surpreendente. Como ele sabia o seu nome sendo que nem Francesca, nem Virgílio, lhe contara como ela se chamava? Seria uma maneira de mostrar que aquele fait-divers envolvendo o assassinato dos amantes Paolo e Francesca era a tal ponto notório que, devido as circunstâncias, Dante só poderia imaginar que se trata deles, reconhecendo-os imediatamente?

Mas o que foi esta história afinal? Em 1275, Francesca, filha de Guido il Vecchio da Polenta, signore di Ravenna, casou-se com Gianciotto Malatesta, signore di Rimini. Francesca envolveu-se com seu cunhado, Paolo Malatesta, cometendo um adultério que, segundo as leis da época, era considerado incestuoso (GAIMARI; KEEN, 2019, p. 73). Quando o caso foi descoberto, o casal foi brutalmente assassinado por Gianciotto, marido e irmão das vítimas. Este trágico acontecimento, ocorrido por volta de 1283/1285 – quando Dante era jovem –, marcou, não apenas sua juventude, mas todos seus contemporâneos também. Ora, se o fato era de tamanha notoriedade, para que recontá-lo no discurso – direto – de Francesca? Talvez porque, para além de uma parábola que ilustra perfeitamente os perigos aos quais o amor expõe os luxuriosos, esta história, tal qual Dante, através as palavras de Francesca, permite-lhe abordar também o papel da literatura e seus perigos.

Se, para os leitores contemporâneos de Dante, a história de Paolo e Francesca não cria suspense nenhum, tampouco para nós, leitores posteriores, há suspense uma vez que o casal já se encontra no Inferno. Assim, o leitor sabe, de antemão, que esta história acaba, necessariamente, mal. Sabemos disso porque esta história, na Divina Comédia, se inicia justamente pelo fim.

A narrativa de Francesca, ainda que profundamente emotiva e emocionante, é lacunar e elíptica – o que corresponde totalmente com o erotismo da cena contada. A temática amorosa é evidenciada também pela anáfora “Amor” que, por três vezes, abre uma estrofe proferida por Francesca: “Amor, que a alma gentil pronto apreende” (v. 100), “Amor, que a amado algum amar perdoa” (v. 103) e por fim “Amor nos conduziu a uma só morte” (v. 106). Tal anáfora não é puramente retórica, ela mostra como o Amor passa a ser dominante, como ele domina a sua vida e a conduz, inevitavelmente, à morte. Cabe observar, também, que o Amor é, aqui, personificado. Esta personificação do Amor é típica da poesia do amor cortês, cantado pelos trovadores provençais.

Depois deste primeiro resumo, Francesca interrompe seu relato. Mas Dante, ainda que profundamente comovido – “o teu tormento até às lágrimas move o meu pesar” (vv. 116-117) – não se dá por satisfeito e deseja saber “dos suspiros no momento,/ com que e como concedeu-te amor/ do secreto desejo o entendimento” (vv. 118-120). Vendo o interesse do poeta, Francesca, apesar da dor que lhe traz a lembrança, aceita contar “la prima radice del nostro amor” (vv. 124-125). A próxima estrofe, que efetivamente conta o que ocorreu, se abre de maneira inesperada. Inicia-se com o verbo “ler”: “Noi leggiavamo un giorno per diletto di Lancialotto come amor lo strinse” (vv. 127-128, grifos nossos). O nome do cavaleiro mencionado, Lancelote, serve de indício do que estava por vir, uma vez que ele se envolveu com Ginevra, esposa do rei Artur. Trata-se, portanto, de uma narrativa rica em detalhes, já que conhecemos precisamente o assunto da leitura – o que significa que ele é relevante para os acontecimentos.

Ademais, logo ficamos sabendo que Francesca e Paolo estavam “sós, e sem qualquer receio” (v. 129). Em italiano, “soli eravamo e sanza alcun sospetto” (v. 129, grifos nossos). Ora, sem suspeita de quê? Há mais de uma interpretação possível aqui. Pode-se pensar que isso quer dizer que, por serem cunhados, eles podiam ficar a sós sem que isso levantasse nenhuma suspeita em ninguém. Uma segunda hipótese, talvez mais interessante, poderia avançar que eles estavam sozinhos sem que eles mesmos pudessem suspeitar, imaginar, as consequencias dramáticas daquela (não tão) inocente atividade de leitura. Este verso é importante porque a solidão favoreceu o erro que os perdeu.

À medida que avançavam na leitura, eles trocavam olhares. Aqui, cabe recordar que, desde a poesia grega arcaica, éros entrava pelos olhos. De fato, o olhar era, tanto na poesia lírica quanto épica, o sentido que era acometido em primeiro pela força de éros. O ponto que os venceu, contudo, foi o momento em que Ginevra e Lancelote se beijam: “Quando leggemo il disïato riso/ esser basciato da cotanto amante” (vv. 133-134). Aqui o sorriso, metonímia da boca, anuncia o beijo que, iniciado num livro, prolonga-se no outro. Pois a cena do beijo adúltero em Lancelote se alastra para a Commedia onde Paolo “tremendo, a boca me beijou no instante” (v. 136). O enlace sexual de Paolo e Francesca selado na intimidade do beijo imitado. 

O realismo de tal cena é admirável. O adjetivo atribuído a Paolo é “tutto tremante”. A aliteração em “t” não só imita a tremedeira que acomete Paolo, como também reproduz toda a fragilidade daquele que é subjugado pelo Amor e não pode resistir, demonstrando a fraqueza do ser humano diante do amor carnal. Ao qualificar Paolo de “tremante”, o poeta dá à personagem uma figura concreta, material que ele, até então, não tinha. Observa-se, aliás, que a corporalidade da mulher, Francesca, não é sugerida em nenhum momento, ao passo que Paolo ganha corpo graças a este adjetivo. Quanto à primeira parte deste verso, considerado por alguns como um dos mais belos versos de amor de todos os tempos, ela também é digna de nota. Afinal, a aliteração em “b” que se ouve “la boca mi basciò” (v. 136) imita, por sua vez, o som do beijo em si.

Sabe-se então que “nesse dia não o lemos mais adiante” (v. 138). É com este verso, bastante sugestivo, que Francesca encerra, bruscamente, o seu relato, como que (inter-)rompido pelo sofrimento e pela violência da recordação. Sofrimento, este, que é reproduzida nos choro da “outra alma”, Paolo, ao passo que a violência do relato repercute na queda do próprio Dante que “como quem se esvai/ em morte, eu me esvaí de pena e dor,/ e caí como corpo morto cai”. A queda do poeta coincide com a queda desta trágica narrativa.

Agora que estabelecemos as grandes linhas do memorável relato de Francesca, é preciso deter-se mais um instante no papel crucial do livro e da leitura nesta história de amor adúltero. O verbo “ler” é repetido não menos que três vezes ao longo dos onze versos que compõem a narrativa de Francesca: “Líamos” (v. 127), “Ao lermos” (v. 133), “lemos” (v. 136). Nas duas primeiras ocorrências, ele aparece logo no início do verso, marcando sua importância: é o verbo mais importante daquela estrofe. Na última ocasião, aparece no último verso, também numa posição marcante. Mas o campo lexical da leitura não se limita ao ato de ler. Com efeito, o termo “leitura” aparece no verso 130, abrindo a segunda estrofe do relato. De modo que cada uma das quatro estrofes que contam a história de como Paolo e Francesca se apaixonaram conta com uma palavra relacionada à leitura. 

Na última estrofe, surge também o “livro” que, no verso 137, é comparado a Galeoto personagem do romance de Lancelote, testemunha dos amores adúlteros entre o cavaleiro e a rainha Ginevra. Mas Galeoto não se limita a testemunhar, ele também o um meio para os amores ilícitos, como o de Ginevra e Lancelote. O que reforça, inclusive, a vocação sensualista do objeto livro e a paixão ganha corpo no corpo do livro. Assim, quando Francesca afirma que “Foi Galeoto o livro, e o seu autor” ela coloca o livro como testemunha de seu enlace amoroso (e ilícito) com o cunhado, mas também como parcialmente responsável por aquele beijo. O livro foi um impulso à queda.

Nota-se, em Francesca, o desejo de transferir a responsabilidade de seu ato para a leitura, o livro, e até mesmo o autor que o escreveu. Ocorre que a culpa é menos do autor do que do leitor. Ou, no caso, dos leitores, Paolo e Francesca, que não souberam distinguir a vida da matéria lida. Tal qual Dom Quichote, o casal confunde a ficção dos romances de cavalaria com a realidade e procuram concretizá-la. Assim, o episódio de Paolo e Francesca não adverte somente contra os perigos de uma leitura mal feita.

Além da reação – equivocada – de Paolo e Francesca quando eles são vencidos pela cena do beijo (o que mostra toda a força da literatura), outros elementos sugerem que o casal não leia como se deve ler. Logo que começa a história, ficamos sabendo que eles liam “para recreio” – em italiano “per diletto” (v. 127) – o que indica que o propósito da leitura era o divertimento. E, de fato, os romances de cavalaria tinham, como principal função, a diversão. Esta era, portanto, a motivação inicial do casal. Em alguma medida, “Diletto” implica o prazer, ainda que este não seja carnal. Por outro lado, no final do relato, sabe-se que Paolo e Francesca abandonaram a leitura, trocando o recreio proporcionado pelo livro pelo prazer erótico provocado por ele. Ora, o fato deles não seguirem adiante na leitura comprova que ela era superficial – o que também explica o engano. Caso tivessem prosseguido, saberiam que o amor ilícito de Lancelote e Ginevra acaba com uma dupla conversão dos dois que se consacram à vida religiosa, trocando o amor profano pelo sagrado.

Como a história de Paolo e Francesca surge logo no canto V (faltam ainda cerca de 95 cantos para a conclusão da Commédia), podemos interpretar esta narrativa, tão trabalhada, como um aviso ao leitor, que deve ter cautela ao ler esta obra de Dante. Além disso, a clara referência a Lancelote é uma alusão ao amor cortês, retratado tanto na poesia trovadoresca provençal como no romance de cavalaria francês. Ora, Dante, assim como outros stilnuovisti, reage justamente contra a doutrina laica do amor cortês, representado por Lancelote.

Precisamente no canto V da Commédia, Dante se insere na tradição do Dolce Stil Nuovo citando seus mestres. Com efeito, Dante introduz, no relato de Francesca, duas citações quase literais. A primeira, no verso 100: “Amor que alma gentil pronto apreende”. Em sua versão original – “Amor, ch’al cor gentil ratto s’apprende” (v. 100, grifos nossos) –  este verso é uma clara alusão ao incipit da canção de Guido Guinizelli, poeta do Dolce Stil Nuovo, de quem Dante considerava-se um discípulo e cujo verso dizia: “Foco d’amor in gentil cor s’aprende” (grifos nossos). Na repetição das palavras “amor”, “cor gentil” e “apprendre”, ecoa o verso de Guinizelli, um dos mestres de Dante. Esta, contudo, não é a única citação presente na fala de Francesca. Quando ela retoma seu relato e diz: “Nessun maggior dolore” (v. 121) transcreve quase que literalmente Boezia, outro autor caro a Dante.

Com estas citações, Dante não só se inscreve numa tradição de poetas do Dolce Stil Nuovo, como também adverte que a história contada ultrapassa a esfera privada. Ela tem um âmbito mais vasto, é, pode-se dizer, universal porque tange à humanidade, diz respeito ao gênero humano como um todo e não apenas de um caso particular porque trata da condição humana sujeita à tentação e ao erro. É, inclusive, por esta razão que Dante parece tão comovido tanto pela história de Paolo e Francesca quanto pelo seu trágico fim e sua danação. Dante – e o leitor por meio dele – se reconhece em Francesca. Por isso sente tamanha compaixão – ou, melhor dizendo, empatia.

Podemos concluir que Francesca, personagem central do Canto V do Inferno, tem uma posição privilegiada na Divina Comédia. Ela não só é dotada de uma voz e de um discurso reproduzido em primeira pessoa, como é a primeira personagem a contar sua história na Commédia. Esta história, inspirada num trágico fait-divers contemporâneo a Dante, lhe permite abordar o tema das paixões, caro à Literatura. Mas a narrativa de Francesca vai além da advertência aos luxuriosos. Por meio dela, Dante adverte seu leitor dos perigos de uma leitura mal feita e se posiciona como um autor inserido na tradição literária do Dolce Stil Nuovo. Para sempre imortalizados, Paolo e Francesca não encarnam somente o casal adúltero, como também os maus-leitores, que precederam Madame Bovary e, assim como ela, não souberam distinguir a vida e a leitura. Talvez seja este, afinal, o seu maior pecado.

Glória & Tragédia: o destino de Aquiles e Heitor na Ilíada

Por Thaïs Chauvel, mestra em Letras e doutoranda USP

A Ilíada de Homero, é um poema épico que canta os grandes feitos dos heróis. O mundo da epopeia é um mundo mítico, que narra a época de bronze em que os homens eram superiores e os deuses intervinham, de modo benéfico ou danoso, nas suas vidas, entrelaçando os planos divino e mortal. A poesia épica é, portanto, idealizada e confere “glória imperecível” aos grandes feitos dos heróis, estes homens superiores: belos aristocratas que excelem no discurso como na luta realizando seu potencial através dos grandes feitos que serão relembrados pela poesia, conferindo-lhes a imortalidade que lhes nega a vida. Este poema se abre com a cólera de Aquiles, o melhor dos aqueus e herói bélico por excelência, que, ofendido por Agamemnon, retira-se do combate logo no primeiro canto, podendo confundir a audiência que pergunta-se como ele poderá conquistar o kleos aphthiton sem participar do conflito. Do lado troiano, encontra-se Heitor, exemplo de nobreza e virilidade, carismático e caro ao ouvinte/leitor do poema, que alcança por meio de sua tragédia particular sua “glória imperecível”. Este curto ensaio propõe esclarecer a construção destes heróis analisando a curiosa construção e sentido do kléos de Aquiles, bem como a terrível tragédia do príncipe troiano Heitor.

É certo que a relação de proximidade com os imortais engrandece os heróis, porém, esta dolorosa interseção dos planos divino e mortal também realça a dura realidade do herói de vida breve: por melhor que ele seja, este não escapa ao “fado irresistível”, a morte. Em tempos de guerra então, a morte torna-se uma realidade cotidiana, uma vez que ela é a consequência imediata do combate e da luta. Assim sendo, a Ilíada é um poema sobre vida e morte, ou como conclui Trajano Vieira, sobre a mortalidade (2003). Embora Aquiles não morra no decorrer deste poema, sua morte prematura já está anunciada logo no primeiro canto pela inconformada genitora imortal de Aquiles, Tétis. Parte da tragédia do Peleida Aquiles é saber que, ao participar do conflito, alcançará glória duradoura, mas morrerá prematuramente. O sofrimento deste herói provém deste conhecimento e deste dilema: participar da guerra e trocar a vida pela glória imperecível, ou retirar-se do conflito e viver uma vida pacífica para depois cair no esquecimento? Embora estivesse conformado com seu destino e tivesse conscientemente escolhido a glória dos grandes feitos na guerra à vida, a atitude de Agamemnon ao tormar-lhe o seu Géras, diminuindo assim sua honra, o leva a questionar a guerra e a cogitar um retorno a Ftia.

Por mais difícil que seja a escolha de Aquiles, este “consciente e deliberadamente trocou sua vida pela glória duradoura” (Knox, 2011), enquanto que Heitor não pode se dar ao luxo de escolher. A mortalidade de Heitor é muito mais problemática no sentido em que a cidade inteira de Tróia depende da vida e da força de Heitor para defender-se. Como Tróia está condenada, uma vez que Páris violou o princípio da hospitalidade, Heitor também está fadado à morte, e a audiência aguarda o funeral de Heitor, que é o funeral de Tróia, desde o momento em que Zeus anuncia a derrota iminente da cidadela no Canto I. No entanto, a morte do herói só ocorre de fato no Canto XXII e o poema todo é uma lenta construção do clímax: o duelo com Aquiles e o inevitável encontro de Heitor com a Moira. 

Para maior emoção no momento do clímax, o poeta atarda ao máximo o momento final. No Canto VI, Heitor já é chorado como morto, e ao expirar, Pátroclo preconiza: “Não muito viverás. Já emparelham contigo a morte e a Moira acerba. Às mãos de Aquiles morrerá.” ( XVI, vv.852-854). É com muito páthos que o poeta elabora diversas despedidas a Heitor, todas antecipando as terríveis consequências que sua morte acarretará. No canto VI, na comovente cena de despedida de Heitor e Andrômaca, este lhe diz: “Por mim não faças sofrer teu coração; contra os fados ninguém me fará baixar ao Hades;” (vv.486-489), mas a balança de Zeus logo irá baixá-lo ao Hades e eles não voltarão a se encontrar. A súplica dos pais de Heitor que imploram para que ele fuja de Aquiles e entre em Tróia também é repleta de páthos. É com muita emoção que Príamo se coloca como velho pai indefeso e que Hécuba expõe o seio pedindo que o filho a poupe de sua morte. Heitor não combate pela glória, mas para defender seus concidadãos, seus pais, sua esposa e seu filho, é sua obrigação de príncipe e todos dependem dele, de sua bravura. E esta é sua tragédia, enquanto herói ele não pode fugir da luta, recusar o combate, ele deve abraçar a luta a despeito da morte.

A hesitação que toma conta de Heitor contribui para o aumento da tensão, três voltas ao redor da muralha ele corre, fugindo à Moira, correndo de Aquiles, pés-velozes, ajudado por Apolo que o faz correr mais rápido. O medo não diminui sua condição de herói uma vez que ele o enfrenta e toma coragem para combater e, ao ver que os deuses não lhe são mais favoráveis, morrer: “Agora a morte má não me está longe, ronda-me. Não me é dado fugir. Zeus o quer, e seu filho, o deus longiflecheiro. Antes, benignos, davam-me proteção. Agora a Moira colhe-me.”(vv.300-304). A morte não diminui, nem tira o valor do herói: vivo, ele era importante o suficiente para os deuses importarem-se com ele, e morto, as divindades não permitem a dilaceração de seu cadáver e preservam-lhe a beleza, característica do herói. Além disso, a devolução de seu corpo é motivo para uma assembleia entre os deuses, na qual eles decidem exigir que Aquiles entregue o corpo do herói ao seu pai para o funeral público apropriado que o herói merece.

Mas Aquiles, guerreiro supremo, também vive sua própria tragédia. Numa cultura da vergonha, na qual o olhar público determina o valor de uma pessoa, Agamemnon, toma-lhe seu géras, parte do espólio de guerra que mensura e materializa sua timé, subtraindo sua honra; Neste momento, rui o conceito de heroísmo e Aquiles, guerreiro bélico por excelência, deixa de acreditar na própria guerra e na glória, uma vez que sua honra no combate não foi respeitada. A partir da crise do Géras no Canto I da Ilíada, nunca mais a demanda da glória o levará a combater (LOURENÇO, 2008). Se Aquiles retorna ao combate no Canto XX é pela amizade ao seu falecido companheiro de armas Pátroclo, a fim de vingar sua morte. Ele mantem-se fiel ao valor do philos, tão relevante na conduta do comportamento heróico que Glauco e Diomedes decidem não enfrentar-se em nome de uma antiga relação de hospitalidade. É respeitando este valor e mantendo-se fiel ao código do herói que Aquiles recusa a compensação ofertada pela embaixada de Agamemnon no Canto IX: esta tem um objetivo prático e visa a vitória por meio da força bélica de Aquiles, e não restabelecer os laços da philótes rompidos no Canto I. Não é pela excelência heroica, mas por amor a Pátroclo que ele retorna ao conflito conquistando seu kléos ao matar Heitor e abraçando sua morte. Ele mata Heitor sabendo que a morte da vítima acarretará sua morte, assim como a de Pátroclo acarretou a morte de Heitor. Aquiles conquista, ao vingar Pátroclo seu Kléos e portanto torna-se um herói; mas a Ilíada termina-se com o funeral de Heitor, “doma-corcéis”, isto por que o Peleida identificou-se com o velho Príamo, que veio suplicar-lhe a devolução do corpo do filho, concedendo um funeral a Heitor em nome de seu pai, Aquiles torna-se assim mais humano também.

Cartas persas

Por Thaïs Chauvel, mestra em Letras e doutoranda USP

As Cartas persas publicadas em 1721 pelo filósofo iluminista francês Montesquieu obtiveram tanto sucesso que foram reeditadas trinta vezes durante a vida do autor. Este romance epistolar de cunho filosófico apresenta Usbek e Rica, dois persas que deixaram sua terra natal por motivos políticos e que viajam pela Europa relatando suas surpresas e experiências vivenciadas ao longo de sua jornada. Enquanto Usbek, homem casado e maduro, medita sobre questões metafísicas, jurídicas e políticas que anunciam O espírito das leis (1748), o jovem e desinibido Rica comenta com ironia as extravagâncias da sociedade francesa do Antigo Regime, entre as quais se encaixa a moda, descrita com precisão na carta XCIX.

Nesta carta de costumes, Rica comenta todo o seu espanto ao testemunhar os “caprichos” da exigente moda francesa, que nem se pode descrever tamanha sua instabilidade. Com efeito, qual seria a utilidade de descrever vestimentas e tecidos que mudam a cada estação, quando uma nova moda surge para  destruir o trabalho de seus artesãos e também do nosso narrador? Ora, por trás desta sátira sobre um fato mundano, Montesquieu desenvolve com habilidade uma crítica política encoberta, que esta resenha pretende desvelar.

Rica, cujo nome retoma as duas primeiras sílabas do adjetivo francês ricaneur1 – que significa rir de maneira sarcástica – é estrangeiro, o que confere legitimidade à sua carta. De fato, o seu deslocamento lhe permite enxergar as extravagâncias da sociedade francesa do Antigo Regime, além de expressar seu espanto. Sendo assim, o campo lexical da surpresa é amplamente desenvolvimento nesta carta, na qual se repete por duas vezes a pergunta retórica “quem poderia acreditar?”. Ademais, os procedimentos de exageração ressaltam o estranhamento e revelam toda a ironia subjacente ao texto, trufado de hipérboles. Assim, Rica declara com categoria que uma mulher que se afasta de Paris por seis meses retorna do campo tão antiga como se tivesse alí se esquecido por trinta anos! Ora, a postura irônica do narrador persa revela um julgamento crítico que é possível graças ao seu estranhamento causado pela distância geográfica, cultural e religiosa entre o mundo oriental e o mundo ocidental.

Muito prático, Rica orienta seu olhar persa para avaliar com senso de humor o custo exorbitante que representa a moda para um marido – valor este que se torna ainda mais problemático se considerarmos que a moda se altera a cada seis meses. Sendo assim, nosso narrador aponta para a instabilidade da moda e a falta de memória dos franceses, que “esqueceram como estavam vestidos este verão”. Permanece após este comentário jocoso, um  questionamento sério sobre as implicações que envolvem uma sociedade na qual não se cultiva a memória e  onde se aceita “ignorar ainda mais” até mesmo o que se vestirá no inverno.

Ao relatar a instabilidade da moda, Rica observa que “O filho desconhece o retrato de sua mãe, tanto a roupa com a qual está pintada lhe parece estrangeira: ele imagina que é alguma Americana ali representada, ou que o pintor quis exprimir alguma de suas fantasias”2. A crítica presente neste comentário não se limita à instabilidade da moda mas revela que o exagero de uma moda, fazendo com que uma mulher branca se pareça com uma americana – ou seja, uma índia nativa das Américas – por conta do excesso de rouge.3 Ora, nem mesmo o filho, que representa o vínculo humano de maior proximidade com a mãe, é capaz de reconhecer aquela que lhe deu à luz, tamanha a influência da moda e da maquiagem de uma determinada época.

A metáfora da filiação é retomada por Rica mais adiante, quando este declara que as filhas são “feitas” de outra forma que suas mães na França. Com efeito, a moda altera também o comportamento das mulheres, que “outrora tinham dentes” – coisa impensável [está fora de questão] num momento em que  a moda é sorrir sem mostrar os dentes.4 Além de alterar o comportamento das mulheres, a moda descrita por Rica ainda deforma o corpo da mulher, pois “houve um tempo em que a altura imensa [dos penteados] colocava o rosto de uma mulher no meio dela mesma”. Ou seja, os excessos da moda chegam a criar uma nova espécie de ser humano que se assemelharia a um monstro com a cabeça no meio do corpo.

Ora, as hipérboles identificadas nos exemplos citados revelam o recurso de ironia através do qual o narrador constrói sua crítica aos excessos da moda que levam à aberrações, devido as alterações extravagantes às quais submetem o corpo feminino. No entanto, é apenas no último parágrafo do texto que o leitor percebe que trata-se de uma crítica política, quando Rica emprega os substantivos “príncipe” “nação” e “corte” para identificar o epicentro da moda: o monarca. Com efeito, ele observa que os franceses mudam de valores e costumes “segundo a idade de seu rei”. A alusão ao absolutismo é explícita pois o rei determina pela sua idade todas as reviravoltas que a moda inflige à sociedade. O monarca impõe através da moda ditada por ele não apenas um comportamento a ser seguido, mas um verdadeiro “padrão”. A conclusão da carta XCIX é clara: “A alma do soberano é um molde que dá forma a todas as outras”. Uma vez que o rei concentra todo o poder em suas mãos, ele “poderia até mesmo conseguir tornar a nação séria”, se ao menos ele tivesse tentado, como assinala com ironia Rica, cuja crítica ao absolutismo não se limita ao despotismo. A instabilidade da moda – e portanto do rei – é tamanha que arquitetos “foram obrigados” a aumentar a altura e a largura das portas de acordo com a vestimenta e o penteado das mulheres, e sendo assim “as regras de sua arte foram subjugadas a esses caprichos”. Caprichos da moda, caprichos do rei, que controla a produção artística da França com autoridade, praticando a censura e usufruindo da célebre lettre de cachet, com a qual mandava aprisionar quem quisesse. Neste regime absolutista, a única “revolução” possível é a da moda, que faz os penteados “subirem insensivelmente” e despencarem “de repente”; e a única forma de expressão permitida, são as moscas de beleza que as mulheres aplicavam, e cujo lugar no rosto indicava um determinado significado. Sendo assim, na França do início do século XVIII, a moda altera tudo e não altera nada.

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1 Jean Starobinski observa a relação do nome Rica e o adjetivo ricaneur em seu Prefácio de 1973 às Cartas Persas.

2 Trechos traduzidos pelo autor da resenha.

3 Conforme esclarece Laurent Versini em sua nota 1 à Lettre XCIX.

4 Conforme esclarece Laurent Versini em sua nota 4 à Lettre XCIX.

O Pequeno Príncipe

Por Thaïs Chauvel, mestra em Letras e doutoranda USP

Olá! Hoje vamos falar do Principezinho, este menino loirinho que o autor imortalizou em belas ilustrações que acompanham este livro que consegue ser, ao mesmo tempo, tão singelo e marcante.

O Pequeno príncipe é quase tão conhecido o Lobo mau ou a Chapeuzinho vermelho. Não há como negar que é este livro também é um clássico da literatura infantil, não é mesmo? A diferença é que este conto foi escrito no século XX, em plena Segunda Guerra mundial. Portanto, não é um conto antigo daqueles que as avós contavam aos netos para preveni-los dos perigos da vida. Não, este é um conto moderno, que fala do mundo de hoje, da época em que vivemos. Época que o autor deste conto, aliás, contemplava com tristeza e desilusão.

Pois é, este conto é autoral. Foi escrito por um autor. E, neste sentido, é muito diferente dos contos de Perrault ou dos Irmãos Grimm, que foram recolhidos e que circulavam oralmente há tanto tempo e passaram por tantos lugares diferentes que não se sabe ao certo de onde vieram, nem quem os inventou… 

Não é o caso do Pequeno Príncipe. O Pequeno Príncipe nasceu na cabeça de um autor: Antoine de Saint-Exupéry. Autor este, inclusive, que tem uma história de vida pra lá de interessante! Foi piloto, viajou o mundo todo: foi da Ásia à América do Sul, onde conheceu sua esposa, Consuelo, com quem teve um relacionamento pra lá de conturbado. Foi um escritor muito famoso, que ficou conhecido por escrever romances com um certo teor autobiográfico. Estamos falando de romances adultos, tá? que foram adaptados ao cinema, romances que narram sua experiência na guerra, por exemplo. Por falar na guerra, você sabia que foi justamente durante a Segunda guerra mundial que o Pequeno Príncipe foi escrito?

Em 1942, Antoine de Saint-Exupéry estava em Nova York, onde vivia exilado desde a derrota francesa. A França, sua terra natal, estava ocupada pela Alemanha nazista. Com o intuito de convencer os Estados-Unidos a entrarem no conflito, Antoine de Saint-Exupéry se instalara na América do Norte. Suas tentativas, contudo, falharam miseravelmente. Ele vivia mal o seu exílio, sentindo-se profundamente solitário num país cuja língua não falava nem sequer compreendia. Preocupados com o desânimo do escritor, o editor americano e sua esposa, vendo-o desenhar, sugeriram que escrevesse um livro para crianças. 

Sugestão esta que combinava perfeitamente com um antigo sonho de Antoine, que há muito desejava em escrever um livro infantil. O Pequeno Príncipe teria nascido, portanto, dos desenhos do autor. As lindas ilustrações que permanecem gravadas em nossa memória quando pensamos no Pequeno Príncipe deram a luz a esta obra que, paradoxalmente, nos ensina que “o essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. E ainda assim, o livro é cheio de imagens inesquecíveis. Foi por causa delas também que a publicação do livro atrasou. Originalmente previsto para ser lançado no Natal de 1942, o Pequeno Príncipe só é publicado em 1943, numa edição bilíngue em francês e em inglês. Junto com a versão original e traduzida do texto de Saint-Exupéry, estão as imagens, cuidadosamente posicionadas, alinhadas com o texto. Elas dificultaram a diagramação do livro, que o autor acompanhou com zelo. Afinal, elas não só fazem parte da história como também contam essa história. 

Sem elas, o Pequeno Príncipe talvez não fosse o Pequeno Príncipe. Essa obra mundialmente famosa: o segundo livro mais vendido e traduzido no mundo depois da Bíblia! Mas o autor do Pequeno Príncipe não chegou a tomar conhecimento do sucesso que sua obra alcançaria. Em junho de 1944, Antoine de Saint-Exupéry desapareceu no mar mediterrâneo, ao realizar o último vôo que lhe fora permitido realizar antes de se aposentar. O Pequeno Príncipe só foi publicado na França após a guerra, em 1946, e se tornaria, então, um best-seller mundial. Mas não vamos mencionar números aqui, até porque números não combinam muito como Pequeno Príncipe, cujo valor não se encontra nas vendas que ocasionou, nem na quantidade de adaptações que inspirou, e sim, na sofisticação de sua história capaz de conversar tanto com adultos quanto com crianças, ressignificando nossas vidas, enriquecendo-as de valiosas lições que, às vezes, as pessoas grandes esquecem. 

Vamos conferir um trecho:

Se lhes dou esses detalhes sobre o asteróide B612 e lhes confio o seu número, é por causa das pessoas grandes. As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: “Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que ele coleciona borboletas? “Mas perguntam: “Qual é sua idade? Quantos irmãos tem ele? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?” Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: “Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado. . . ” elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma idéia da casa. É preciso dizer-lhes: “Vi uma casa de seiscentos contos”. Então elas exclamam: “Que beleza“.

Por sorte, enquanto continuarmos lendo o precioso conto filosófico de Antoine de Saint—Exupéry, ouvindo o que o Pequeno Príncipe tem a nos dizer, ele continuará nos ensinando. Afinal, a história do Pequeno Príncipe é, antes de mais nada, a história de um homem que escuta uma história. E se sabemos como ouvi-la bem, se soubermos enxergar elefantes dentro de jibóias, então perceberemos o que a literatura é capaz de ensinar aos homens sobre eles mesmos. Porque o que este conto filosófico nos propõe é embarcar numa inesquecível jornada que no ajudará a exergar o real significado das coisas. Afinal: “Para vocês, que amam também o principezinho, como para mim, todo o universo muda de sentido.”.

E é com imenso prazer que eu digo a você que, assim como eu, também ama o Pequeno Príncipe, e a você que ainda não o leu ou releu esta obra depois de adulto, que a MizLitê preparou um curso online muuuito especial sobre o Pequeno Príncipe. Nele, vamos tentar enxergar o essencial desta obra um tanto quanto enigmática. Juntos, vamos falar do resumo do livro o pequeno príncipe, vamos compreender melhor sua estrutura, o modo narrativo, e vamos interpretar os desenhos, para alcançarmos a mensagem filosófica desta obra tão amada do Século XX. Se você é fã do pequeno príncipe e da sua raposa, este curso foi feito sob medida pra você! Se você leu este clássico da literatura infantil quando criança e se encantou mas nunca mais revistou esta obra, este curso é perfeito pra você. E se você ainda não teve o prazer de conhecer a história do Pequeno Príncipe e seu significa, este curso online é a ocasião perfeita pra vocês!

Vamos, juntos (re) descrobrir este livro elaboradíssimo e conhecer suas possíveis interpetações.