Em seu romance A Modificação, Michel Butor pode resumir-se da seguinte maneira: “La modification é o retrato psicológico de um homem que faz, num trem, o percurso de Paris a Roma.” (PERRONE-MOISES, 1966, p.41). León Delmont viaja a Roma para comunicar à sua amante sua decisão recém-tomada de separar-se da esposa, com o intuito de convidá-la a mudar-se para Paris.
Porém, conforme o trem se aproxima de Roma, as reminiscências da personagem o levam a questionar sua intenção inicial. À medida que o percurso do trem o afasta de Paris e de sua esposa e a distancia que o aproxima de sua amante diminui, seu desejo se modifica, cristalizando-se sob a forma de um projeto de livro. « Il me faudrait écrire un livre; ce serait pour moi le moyen de combler le vide» (BUTOR, 2012, pp. 271-272), pensa o narrador que pretende « montrer dans ce livre le rôle que peut jouer Rome dans la vie d’un homme à Paris » (BUTOR, 2012, p. 278). Ora, a semelhança entre o projeto literário de Léon Delmont e o romance que o leitor acaba de ler pode levar a crer que o que foi lido, foi escrito pelo protagonista.
Esta suspeita se acentua pela ambiguidade da frase seguinte « ce livre futur et nécessaire dont vous tenez la forme dans les mains » (BUTOR, 2012, p. 283). A ambivalência da frase reside no emprego do narrador em segunda pessoa do plural “vous”. Afinal, a história toda é narrada na segunda pessoa do plural, o que significa que a personagem relata sua vida íntima usando o “vous”. Esta escolha de foco narrativa indica que a personagem é mantida como eixo referencial e também transforma o leitor em um duplo do narrador. Assim, o leitor não tem como saber se a expressão “vous tenez la forme dans les mains” refere-se às mãos da personagem ou às suas próprias mãos. Sabe-se que ambos seguram o objeto livro em suas mãos, o que ressalta a ambiguidade da frase.
Vale lembrar que Michel Butor é representativo do Novo Romance francês, no qual a linguagem é concebida como escritura e não apenas um veículo comunicativo. Por esta razão, a fábula é diluída ao mínimo enquanto prevalece a imagem, a forma literária. O teórico Jean Ricardou afirma que « Le roman n’est plus l’écriture d’une aventure mais l’aventure d’une écriture » (RICARDOU, 1967, p. 111).
O novo romance francês da segunda metade do século XX, também conhecido como a “escola do olhar”, defende a “apreensão do mundo pelo sentido da visão” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 20). Contudo, a noção de uma realidade que pudesse ser absoluta se tornou utópica ao longo do século XX: “esses romancistas reconhecem no real várias camadas” (1966, p.18), assinala Leyla Perrone-Moisés em seu livro de ensaios sobre o novo romance francês.
Segundo a crítica brasileira, o romance é “o domínio do fenomenológico por excelência”, um instrumento no qual se pode “estudar de que modo a realidade nos aparece” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p.19). Com efeito, os novos romancistas se preocupam em buscar uma nova forma de escrever a realidade em termos de subjetividade, e não mais de objetividade. Esses autores questionam, portanto, o narrador realista tradicional usando o próprio romance como instrumento de reflexão e contestação, em busca de uma nova proposta literária que dê conta de uma realidade fragmentada, não mais totalitária.
Em seu ensaio, “Michel Butor, ordenador do real”, Leyla Perrone-Moisés interpreta de diversas maneiras o emprego do narrador em segunda pessoa do plural no romance A Modificação. Após notar que o “vous”, segunda pessoa do plural em francês, “corresponde à nossa terceira pessoa do singular” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 42), a autora analisa que “o emprego do “vous” dá ainda à narrativa um tom moralista, como quando se diz a alguém: “se você fizer isto acontecerá aquilo” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 43). A crítica ressalta ainda que “a segunda pessoa foi usada por La Fontaine em algumas fábulas, com este valor didático” (PERRONE-MOISÉS, 1966, p. 43).
Esta comparação é interessante, uma vez que Walter Benjamin já assinalava dimensão utilitária das narrativas, em seu célebre ensaio intitulado “O Narrador”. Segundo Benjamin, o narrador dá conselhos tecidos “na substância viva da existência: a sabedoria – o lado épico da verdade” (BENJAMIN, ano, p. 200). Para tanto, deve recorrer ao acervo de toda uma vida usando, por vezes, a experiência alheia. Ora, o narrador de A Modificação insere em sua narrativa verdades universais – sabedoria coletiva – que se assemelham às máximas de escritores moralistas.
Leyla Perrone-Moises nota que Michel Butor empenha-se no estudo do comportamento humano, identificando dentre “os “novos-romancistas” [como] o que mais se coloca na linha da tradição literária francesa” em que sempre predominaram os humanistas e os moralistas” (PERRONE-MOISES, 1966, p.37).
Os novos romancistas criticavam a forma como o romance tradicional reproduz os pensamentos das personagens, alegando que a mente não opera de modo tão ordenado. Michel Butor busca reproduzir uma linha de pensamento íntima, “respeitando simplesmente o mecanismo das associações, segundo o qual os fatos ressurgem e são mais ou menos ampliados segundo o eco que tiveram na sensibilidade do indivíduo” (PERRONE-MOISES, 1966, p.19).
As reminiscências e reflexões tecidas pela personagem imitam a verdade psicológica, fazendo com que o fio da narrativa pareça descosturado. Contudo, Jean Ricardou mostra que Michel Butor escreve segundo uma rigorosa estrutura de oscilação dos tempos: o passado recente com Henriette e Cécile, o passado distante que relata o início do casamento com Henriette, o passado que retrata o encontro com Cécile, o futuro próximo que “é como que recordado em um futuro ainda mais avançado, de modo que não existe um presente fixo, mas um tempo com perpétuo movimento” (PERRONE-MOISES, 1966, p.42). Em seu ensaio “O narrador”, Walter Benjamin afirma que “somente no romance ocorre uma reminiscência criadora” (BENJAMIN, p.212).
Para justificar seu argumento, o filósofo cita um trecho de Georg Lukáçs segundo o qual “o sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida […] na corrente vital de seu passado resumido na reminiscência” (BENJAMIN, p.212). Parece ser de fato o que ocorre com a personagem principal de A Modificação, em plena crise existencial, que, por meio das reminiscências de sua história sentimental, supera a dualidade da vida simbolizada pela esposa Henriette e a amante Cécile. A verdadeira modificação não é a troca da esposa pela amante, mas a substituição das mulheres pela escritura, ato unificador.
O nome da esposa de Léon Delmont é digno de nota, já que Henriette é uma heroína de Honoré de Balzac. No romance O Lírio no vale, Felix de Vandenesse apaixona-se por Henriette, prisioneira de um casamento infeliz e mãe de filhos fracos e doentes. Para expressar seu sentimento amoroso, Felix lhe traz buquês de flores, e assim, Henriette “renasce na primavera depois de ter murchado no inverno”.
A atmosfera de Paris em A Modificação é invernal: a estação é chuvosa e cinzenta, o casamento com Henriette é infeliz a despeito dos quatro filhos do casal. Assim, em mais de um aspecto, a heroína balzaquiana ecoa no nome da personagem de Michel Butor, o que poderia indicar uma relação com o precursor do romance moderno na França.
De acordo com Leyla Perrone-Moisés “este romance se coloca na linha da tradição romanesca francesa, sendo uma renovação das fórmulas de Balzac de Proust (PERRONE-MOISES, 1966, p. 42). Para a crítica literária, Butor herda de Balzac “o desígnio obstinado de recriar o mundo exterior em sua totalidade. (PERRONE-MOISES, 1966, p. 42). Nota-se, no decorrer do século XIX, que “o romance vai transformar-se num gênero totalizador e totalitário” (PERRONE-MOISÉS, 2014, p. 21).
Para Balzac a descrição é « l’un des instruments nécessaires au projet realiste de peinture totale d’une société d’une époque » (TADIÉ, 2007, p. 466). Michel Butor retoma as longas descrições balzaquianas com uma minúcia que se aproxima da objetividade almejada pelo romance realista do século passado. Por outro lado, a ambição compositora de Balzac encontra-se na preocupação ordenadora que rege o mundo romanesco de Michel Butor.A Modificação obedece a uma lógica construtora rigorosa e, se considerarmos que o romance que acabamos de ler é o livro escrito por Léon Delmont, a estrutura da obra é circular. Jean-Yves Tadié explica que a obra dita fechada tem uma « structure close: um ensemble circulaire qui se referme sur lui-même, dont la fin reprend le commencement » (TADIÉ, 1990, p.90). Nesta perspectiva, A Modificação de Michel Butor seria uma obra em ring-composition que, através uma estrutura rigorosa que simula um fluxo de pensamento espontâneo, propõe uma modificação do próprio gênero romanesco.