Por Thaïs Chauvel, Mestra Doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo – USP
A obra de Samuel Beckett é tão vasta quanto variada: passando do romance ao drama, sem esquecer das peças televisivas e radiofônicas, é evidente que esta obra original busca, se não abolir, ao menos abalar a divisão de gêneros tradicional. Ademais, enquanto seus escritos de juventude buscavam parodiar a literatura canônica ocidental, em especial a mímese caraterística do romance realista do século XIX, suas obras tardias desenvolvem uma linguagem original próxima à experimentação que evidencia o descompasso existente entre a capacidade – falha – de percepção do mundo e seu modo – insatisfatório – de dizê-lo e representá-lo. Por conta disso, o narrador beckettiano da última fase, constantemente colocado sob o signo da desconfiança, reflete a respeito da realidade e da imaginação ao mesmo tempo que duvida de sua própria existência.
É dentro desta perspectiva que propomos uma breve reflexão sobre Companhia, de 1980, e a miniatura dramática “Improviso de Ohio”, de 1981. Tendo em vista que o texto em prosa intitulado Companhia já foi encenado por Pierre Chabert e o renomado crítico beckettiano S.E. Gontarski, pretende-se refletir, num primeiro momento, sobre o tratamento genérico de ambas as obras: enquanto a primeira apresenta um potencial performativo, a segunda, embora pertença ao gênero teatral, não apresenta sequer um diálogo, motor dramático do teatro ocidental desde a antiguidade clássica. Num segundo momento, propõe-se apontar para as recorrências temáticas destas duas obras representativas da fase final de Beckett.
O texto em prosa intitulado Companhia é constituído por 58 parágrafos nos quais desenvolve-se uma espécie de “pas-de-deux pronominal” segundo a denominação de S.E. Gontarski. Com efeito, nota-se a disputa entre a segunda e a terceira pessoa do singular – ora, o embate dialógico não seria a condição mínima para a teatralidade clássica? De modo a representar o modo poroso da comunicação, a voz cinde-se em muitos narradores “dividindo sua voz em instâncias em conflito, conferindo força dramática, portanto, a suas incertezas e espessura cênica aos processos de enunciação” (ANDRADE, 2011, p.10). De fato, a teatralização do processo narrativo ainda se dá pelo modo como a voz autoritária em terceira pessoa fala à pessoa deitada no chão como se lhe passasse as rubricas de uma peça: “ você agora deitado de costas no escuro não irá erguer-se de novo para apertar as pernas com os braços e abaixar a cabeça até não poder abaixa-la mais” (BECKETT, 2011, p. 62).
A pedra basilar do processo de enunciação de Companhia é o interdito original do uso da primeira pessoa que se dissolve na segunda e terceira pessoa. É notável “a discrepância de tom, de modalidade afetiva, entre a passagem em regime de segunda pessoa e aquelas em terceira, em que o corpo deitado é descrito pelo narrador” (ANDRADE, 2011, p. 13). Com efeito, enquanto a terceira pessoa é austera e obcecada pela verificabilidade de suas constatações, a segunda pessoa traz relatos líricos de uma vivência. Dessa forma, a ruptura dos gêneros em Companhia “combina ficção, poesia e drama ao limite da quase indistinção” (ANDRADE, 2011,p. 8).
Algo semelhante ocorre no Improviso de Ohio, miniatura dramática que coloca em cena duas personagens o Lecteur e o Entendeur. Embora a peça tenha duas personagens, não se estabelece um diálogo falado entre elas já que o Lecteur é o único a se expressar em voz alta. Não se trata, porém de uma comunicação espontânea, já que, como indica o próprio nome da personagem, sua função não é criar uma fala, mas ler o que está escrito em um livro. Seu interlocutor, o Entendeur, por sua vez, comunica-se apenas com as mãos, fazendo “toc” cada vez que quer interromper a leitura. Este método de comunicação revela-se eficaz, uma vez que o Lecteur suspende sua fala e retoma a leitura repetindo as últimas orações. Assim, pode-se dizer que a peça Improviso de Ohio aproxima-se de uma narrativa, afinal, apesar de contar com duas personagens bem caracterizadas num palco, ela apresenta um monólogo que é, na realidade, a leitura de um texto em prosa do gênero narrativo, e não de uma peça de teatro clássica. Sendo assim, tanto em Companhia quanto no Improviso de Ohio, as fronteiras se tornam indistintas e nebulosas entre os três gêneros tradicionais: o épico, o drama e o lírico.
De um ponto de vista formal, cabe ressaltar aqui algumas inovações dignas de um autor experimental como Beckett: a novidade formal dos dramatículos como O Improviso de Ohio (escrito a pedido do crítico S.E. Gontarski na ocasião de um colóquio) e também da chamada “última pessoa narrativa” de Companhia. Tais inovações formais contribuem para a experimentação de uma linguagem original, única, fragmentada, que caminha em direção a uma literatura da despalavra, concisa e, no entanto, repleta de repetições. Assim, o Leitor deve concluir o Improviso de Ohio com a seguinte colocação: “il ne reste rien a dire” (BECKETT, p. 67), que ele repete duas vezes seguidas. Com efeito, a ansiedade da “última pessoa narrativa” de Companhia ante a dificuldade de narrar faz com que as vozes narrativas tenham um receio de concisão e minúcia de descrição e, paralelamente, uma insistência, quase involuntária, nas repetições. Do mesmo modo, o Leitor do Improviso de Ohio repete-se com muita frequência: “Ainsi la triste histoire […] Ainsi la triste histoire une dernière fois redite […]” ao mesmo tempo em que insiste que “il reste peu à dire”. O próprio conteúdo da fábula contada pelo Leitor remete a essa literatura da despalavra, pois tudo é “sans jamais échanger un mot” (“sem jamais trocar uma palavras” – tradução nossa).
Ambos os textos comentados se estruturam, portanto, em torno da tensão entre a ameaça do silêncio e o excesso de repetições. Ora, não se poderia considerar que a repetição, na medida em que ela repete sempre algo que já foi dito, tem algo de silencioso em sua pronúncia? Em sua obra intitulada Unwording the world, a crítica Carla Locatelli argumenta que a “compulsion to repeat” (LOCATELLI, 1990, p. 124) – identificada com insistência em ambas as obras analisadas aqui – constitui “a mouvement that struggels against conceptualization and mimetic representation” (LOCATELLI, 1990, p. 122). Neste ponto, convém ainda esclarecer que as peças finais de Beckett exploram o desafio da representação evidenciando “the fact that life cannot be re-produced” (LOCATELLI, 1990, p.116).
É verdade que a dificuldade (ou impossibilidade?) de representação do mundo não é um tema novo na obra beckettiana, desde os anos 1930, que parodia o romance realista europeu do século XIX. No entanto, a última fase de Beckett não reflete apenas sobre a representação mimética do mundo, mas se interessa nos mecanismos da imaginação antes da cristalização da imagem. Ou seja, em sua obra final, o autor irlandês busca compreender qual é o lugar da imaginação no processo de pensar e apreender o mundo, e, por extensão, mensurar a importância da leitura e da escrita. De alguma maneira, tanto Companhia quanto o Improviso de Ohio parecem se colocar, ainda que de maneiras diferentes, a mesma questão, a saber: qual é o papel da Arte?
Companhia apresenta o drama da imaginação buscando manter um contorno estável, apesar da cisão de vozes mencionada acima. A fragmentação do narrador em múltiplas vozes narrativas corresponde a uma crise do sujeito. A diluição da primeira pessoa em uma multiplicidade de vozes – autor, narrador, personagem, leitor – que se confundem e o decorrente embate dessas vozes narrativas evidenciam que o indivíduo, enquanto aquilo que não se divide, constitui uma verdadeira impossibilidade para Beckett. Para ele, não há um “eu” bem estabelecido tal como retratado pelo narrador flaubertiano. Pode-se fixar na escrita apenas uma voz – fugidia, própria da oralidade – que desconfia de sua capacidade de narrar denunciando toda porosidade da linguagem e a consequente dificuldade de comunicação que resulta numa “hermenêutica da desconfiança” (ANDRADE, 2011, p. 8), constituinte de “um projeto cognitivo comum” da última fase beckettiana.
De fato, não se pode confiar na “última pessoa narrativa” de Companhia, insegura a ponto de precisar do olhar legitimador do outro para convencer-se de sua própria existência. A tensão da narrativa reside na incerteza fundamental de que a pessoa deitada não sabe nem se a voz lhe é endereçada: a ameaça do silêncio que paira é pior do que a fala autoritária da voz. Seja como for, esta voz insidiosa procura convencer o ouvinte de que as histórias que conta são lembranças suas, mas sua memória falha não lhe permite concluir se tal afirmação é verdadeira ou falsa. No entanto, os leitores que conhecem a biografia do escritor, “notarão que estas memórias de extração (pseudo) biográfica são em última análise atribuíveis ao próprio Beckett” (ANDRADE, 2011, p.13).
Tanto em Companhia quanto no Improviso de Ohio, que alguns críticos interpretam como representação do relacionamento entre Samuel Beckett e James Joyce, é evidente a retomada de elementos biográficos nestes escritos, o que contribui para a confusão dos papéis narrador-escritor. No que diz respeito às personagens do Entendeur e do Lecteur do Improviso de Ohio, pode-se dizer que elas não se constroem como um duplo de fato no sentido tradicional do termo, uma vez que são funções complementares constituem um único ser cindido, num processo de cisão de voz análogo ao de Companhia.
Acerca disso, vale notar ainda que, em um determinado momento de Companhia, a voz imagina um entendedor H e um ouvinte M, ambos lembram a dinâmica proposta pelas personagens-funções do Improviso de Ohio, que não constituem um “duplo” e sim um “único” composto de duas partes complementares. À voz autoritária em terceira pessoa, contrapõe-se a “segunda pessoa, traduzindo em palavras e cristalizando em imagens os resíduos da existência”. Essa voz lírica relata narrativas curtas: são quinze acontecimentos que, de modo análogo à primeira trilogia beckettiana (Molloy, Mallone morre e O inominável), não constituem eventos uma vez que não há um encadeamento dramático causal.
Vale notar que o estilo lírico dessas passagens específicas apresenta uma potencialidade conflitiva que proporciona uma forte dose de comoção, tanto na personagem quanto no leitor. Esses acontecimentos narrados contêm marcas históricas referenciais ancoradas a algo físico representando a concretude de um tempo firmado no passado. A memória, porém, é falha e tão incerta quanto a percepção. Uma vez que a memória opera como processo de edição, de re-articulação (re-member) das lembranças constitutivas do sujeito, o uso da memória em Companhia mergulha toda voz narrativa sob o signo da desconfiança. As fronteiras entre memória e ficção são erodidas ao longo pela multiplicidade de vozes narrativa num processo de fusão entre a fábula e memória: “a fabula de alguém fabulando de alguém com você no escuro” (BECKETT, 2011, p. 63).
O espaço de Companhia torna-se problemático, talvez por que esteja escuro e a percepção sensível continua sendo um meio – ainda que imperfeito – de apreensão e compreensão do mundo. A escuridão impossibilita o uso do sentido da visão, o que certamente contribui para o efeito de insegurança, identificando a personagem ao leitor, a quem caberia imaginar o espaço e as histórias narrados pela voz. Assim, a terceira pessoa austera “buscando estabelecer constatações de funcionamento inquestionáveis, leis e constantes de base” (ANDRADE, 2011, p. 13) oferece ao leitor-personagem uma descrição minuciosa, porém cambiante, do espaço, alternado com frequência. Assim, um dos acontecimentos traz a descrição meticulosa de um caramanchão, “um hexaedro rústico, de madeira” de dois metros de diâmetro e três de altura, sem esquecer o formato das “pequenas vidraças coloridas em forma de losango” (BECKETT, 2011, p.47). O texto se dá segundo um contraste entre a escuridão do momento presente sombrio e a luz morrendo no entardecer, a chama, a “lueur”, a “shade of light”, dos quinze episódios que narram acontecimentos, numa dinâmica que lembra a técnica renascentista do chiaroscuro.
A linguagem problematizada em Companhia e no Improviso de Ohio torna-se um tema da obra final beckettiana. Embora a forma seja inteligível, ela é duvidosa. A materialidade da palavra torna a abstração impossível, no entanto, sua substância é porosa. Esta fase de Beckett é uma fase de descontrução que evidencia o processo de erosão da linguagem e da impossibilidade comunicação que, em ambos os casos conclui-se com o silêncio. Nesta solidão, o “Inventor, inventado inventando isso tudo por Companhia” (BECKETT, 2011, p. 52), a imaginação permite multiplicar as vozes criando uma ilusão de não solidão. Assim, o sujeito depende o olhar legitimador do outro para ter consciência de sua própria existência. Da mesma forma, as personagens do Improviso de Ohio estão “together alone”, sozinhos juntos, e a leitura também opera como um modo de confirmação da existência e a fábula proporcionada pela leitura constitui uma forma de companhia.
BIBLIOGRAFIA:
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