Sobre André Gide e Os moedeiros falsos (1925)

Por Thaïs Chauvel,Mª e Doutoranda em Letras da USP

Os moedeiros falsos, de André Gide, inicia-se com a promessa de um romance de formação: o jovem Bernard acaba de descobrir que é um filho bastardo e decide fugir de casa. Contudo, um elemento indica que a narrativa visa parodiar o bindungsroman: ao invés da tradicional lágrima de emoção, é uma gota de suor que escorre de seu rosto. Este detalhe ironiza as tradicionais narrativas de aprendizagem ao banalizar o drama pessoal do rapaz. A ironia consiste em oferecer um conteúdo que parece ser favorável “aux idées, aux personnages, au style que la forme ou l’énonciation de ce discours détruit” (TADIÉ, 1990, p.28). A lágrima de suor representa uma audácia formal por parte de Gide uma vez que exagera uma das convenções de um determinado gênero literário – a lágrima no romance de formação – colocando em questão o texto preexistente, o modelo do romance familiar tradicional. « Le XXème siècle n’a pas inventé l’ironie, mais il n’y a plus de grand roman sans une énonciation ironique qui le porte : tout est ironie » (TADIÉ, 1990, p.25), assinala Jean-Yves Tadié.


A ironia de Gide consiste em reproduzir o modelo realista que ele pretende desafiar frustrando a expectativa do leitor com relação à escolha do gênero. Dessa forma, o que prometia ser o romance de formação de Bernard, é também a história da elaboração do romance de Edouard, da gravidez de Laura, da relação de Vincent com Lady Griffith, de Passavant com Olivier, do pensionato dos Azaïs, do sucídio de Boris e assim por diante. Jean-Yves Tadié observa que o romance de Gide é « finalement moins un roman que le canevas de nombreux romans possibles » (TADIÉ, 2007,p. 638). Com efeito, cinco ou seis intrigas permeiam o romance, que anuncia histórias embrionárias que não serão desenvolvidas no desenrolar da obra.


Dentro desta perspectiva, o próprio romance de Gide poderia ser tomado como uma moeda falsa, que aparenta afiliar-se a um gênero, embora não reproduza suas convenções literárias. O narrador gidiano soa falso porque, a principio, parece ser um narrador onisciente tradicional, mas logo sua onisciência se revela falha: “Je ne sais pas trop où il dîna ce soir, ni même s’il dîna du tout”. Esta indecisão por parte do narrador constitui uma audácia formal de Gide com relação ao narrador teocêntrico – onisciente e onipotente – forjado no modelo realista. Acostumado ao romance tradicional, o leitor que espera poder se fiar na palavra do narrador gidiano tem suas expectativas frustradas e é forçado “a sair de sua passividade e de sua sujeição” (CAMPOS, 2006, p. 37).


O narrador gidiano também avalia o caráter de suas personagens, como no trecho a seguir: « On pourrait croire, à ce dialogue, ces enfants encore plus dépravés qu’ils ne sont. C’est surtout pour se donner des airs qu’ils parlent ainsi, j’en suis sûr » (GIDE, 2012, p. 281). Ora, este comentário de cunho moralista desvela uma insuficiência do narrador que contradiz a lógica teocêntrica do narrador tradicional. Ao acrescentar a oração «j’en suis sûr», expressão que supostamente deveria passar alguma segurança ao leitor, o narrador ironicamente revela não ter absoluta certeza no que afirma. Não se trata de uma afirmação, mas de uma opinião pessoal acerca do comportamento das personagens que leva o leitor “a desconfiar do narrador, já que a ficção não pode ser verificada na realidade” (CAMPOS, 2006, p. 34). Ao contrário do narrador “teocêntrico” balzaquiano, o narrador gidiano “não é mais garantia de veracidade e anula-se o pacto implícito que o liga ao leitor” (CAMPOS, 2006, p. 34).


Além de tecer verdades universais como « Les préjugés sont les pilotis de la civilisation » (GIDE, 2012, p. 19), o autor de Os Moedeiros falsos inclui uma máxima de La Rochefoucauld “Il arrive quelquefois des accidents dans la vie d’où il faut être un peu fou pour bien se tirer” (GIDE, 2012, p. 138) como epígrafe do capítulo 14 da Primeira parte do romance. O narrador gidiano ainda se permite aconselhar suas personagens, comentando suas ações e dizendo como deveriam agir: «J’espérais d’Olivier qu’il aurait mieux su s’en défendre [de Passavant]; mais il est de nature tendre et sensible à la flatterie» (GIDE, 2012, p. 244). Ora, de acordo com Walter Benjamin “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (BEJAMIN, 1985, p.200).


As palavras também podem ser lidas como moedas falsas, por exemplo, quando o narrador exprime dúvidas quanto à justeza de determinados termos empregados: « J’ai dit qu’ils ne se parlaient pas beaucoup; une sorte de contrainte étrange inexplicable […](je n’aime pas ce mot « inexplicable », et ne l’écris ici que par insufisance provisoire) » (GIDE, 2012, p. 237). Neste trecho, o narrador relata suas inseguranças, explicitando sua “insuficiência” de modo a perturbar o público acostumado ao romance tradicional. Primeiro, porque o narrador parece incapaz de “explicar” o que impede Bernard e Edouard de se falarem normalmente. Depois, porque a insegurança do narrador com relação à palavra empregada o obriga a interrogar o valor do adjetivo “inexplicable”. Assim, André Gide sugere que “a literatura não impõe um sentido, vive mais por causa de seus questionamentos do que por suas respostas” (CAMPOS, 2006, p.37).


O crítico Erich Auerbach observa « le cas d’André Gide qui, dans Les Faux-monnayeurs, modifie constamment le point de vue à partir duquel les événements (déjà compliqués en eux-mêmes) sont appréhendés » (AUERBACH, 1977, p.540), analisando que este autor abandona o ponto de vista da objetividade em prol de uma perspectiva mais variada que mostre o real «dans la discontinuité » (AUERBACH, 1977, p. 540). Com efeito, este único romance de Gide reúne dois focos de luz: “há um narrador, testemunha anônima que circula como uma sombra no romance, enquanto o segundo foco, formado pelo Diário de Edouard, […] uma outra narração complementar da primeira.” (CAMPOS, 2006, p.31). A transcrição de trechos do diário de uma das personagens do romance permite ao autor evitar o uso excessivo do narrador onisciente e oferece à narrativa pontos de vista “complementares, mas também concorrentes”, já que ambas podem narrar um mesmo acontecimento através de perspectivas distintas. De acordo com Regina Salgado Campos, a multiplicidade de pontos de vista se identifica ainda na quantidade de cartas citadas no romance (10) e nos monólogos interiores das personagens. O entrelaçamento de diversas vozes narrativas revela que a versão está ao alcance, não a verdade.


“O processo de desmascaramento do autor onisciente torna-se explícito no capítulo em que encontramos a personagem “autor” (capítulo sete da Segunda parte)” (CAMPOS, 2006, p. 35). Com efeito, este capítulo suspende a narrativa e comenta o desenrolar da intriga desintegrando a ilusão romanesca da verossimilhança. Afirma-se que « Bernard est assurément beaucoup trop jeune encore pour prendre la direction d’une intrigue » (GIDE, 2012, p. 242), confirmando a suspeita de que o incipit tradicional do romance era uma trapaça, já que não se trata de um romance de formação. Além disso, ao fazer a seguinte confissão: «je crains qu’en confiant le petit Boris aux Azaïs, Édouard ne commette une imprudence» (GIDE, 2012, p. 241), o “autor” revela que desconhece a progressão de sua própria obra, opondo-se ao modelo de “autor” tradicional que “por princípio deve saber o que vai acontecer em seguida” (CAMPOS, 2006, p.35). Vale notar que o emprego do subjuntivo indica dúvida, dando a entender que o “autor” ignora as trágicas consequências que a escolha de Edouard irá desencadear.


Regina Salgado Campos interpreta “o jogo entre o narrador onisciente e o narrador explícito que faz que não sabe o que está acontecendo” como uma “demonstração” de que “tudo está relativizado” (CAMPOS, 2006, p. 36). A técnica da refração da realidade em uma multiplicidade de pontos de vista aliada à paródia do narrador onisciente são procedimentos narrativos colocados em obra por André Gide para advertir que “a impostura vence quando o autor se arroga o monopólio do poder e do saber, quando a narração visa a ilusão e a mistificação” (CAMPOS, 2006, p.37). Com efeito, a circulação de moedas falsas espalhadas no decorrer da narrativa: os romans de gare de Passavant, os filhos bastardos, a religião moralista, e justiça burguesa, ensinam ao leitor que não deve se fiar às aparências, nem mesmo a uma representação mimética da realidade. O romance moderno de André Gide questiona o romance realista como modo de representação do mundo e forma de autoconhecimento, uma vez que o gênero reflete apenas uma versão da realidade – a ideologia burguesa, que confunde ser e parecer, verdade e verossimilhança.


No capítulo 18 dos Moedeiros falsos, Edouard escreve que seu diário: « C’est le miroir qu’avec moi je promène ». Ora, sua colocação alude ao famoso aforismo de Stendhal « un roman est un miroir que l’on promène le long du chemin ». A metáfora do espelho foi utilizada com frequência no século XIX para definir a romance realista. A imagem coloca que refletir – nos dois sentidos do termo – é objetivo da representação romanesca. Sendo assim, o romance não deveria ser apenas o reflexo do mundo exterior, a partir da reconstituição imagética da realidade, mas deveria ainda tecer uma reflexão acerca desta realidade.

A metáfora do espelho se reencontra numa inovação narrativa proposta por André Gide: a mise en abyme. Este procedimento consiste em criar uma obra dentro da obra, como ocorre em Os Moedeiros falsos onde a personagem de “Edouard é romancista e tem como projeto escrever um romance também chamado Os moedeiros falsos” (CAMPOS, 2006, p. 32). Este mecanismo metalinguístico coloca o romance não somente como espelho do mundo social, mas também (e principalmente) do próprio gênero romanesco. O dispositivo de auto-referencialidade da escrita permite criar uma “obra que é ao mesmo tempo romance e meditação acerca do romance, de suas possibilidades como forma literária.” (PERRONE-MOISES, 1996, p. 29).


Os Moedeiros falsos também apresenta o mecanismo circular, chamado ring-composition, que consiste em terminar o romance no mesmo ponto em que começou. Dessa forma, o romance inicia-se com a fuga de Bernard e encerra-se com seu retorno a casa, onde o espera seu irmão Caloub, cujo nome pode ser um anagrama de “boucle”. Walter Benjamin estima que o final de um romance é a particularidade mais fundamental do gênero, uma vez que, ao contrário de uma narrativa, “o romance não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido da vida” (BENJAMIN, p.213). De acordo com Benjamin, “o sentido da vida somente se revela a partir de sua morte” (BENJAMIN, p.213), nem que seja a “morte no sentido figurado – o fim do romance” (BENJAMIN, p.213). Pode-se considerar que Gide convida o leitor a refletir ao final de seu romances Les Faux-Monnayeurs.


Porém, mesmo não ocorre com romance de Edouard, que não chega ao fim. Além de notas teóricas, temos apenas um trecho transcrito no capítulo 15 da Terceira parte. Nesta ocasião, Edouard tenta dar uma lição de moral a Georges por meio da literatura, conferindo ao seu romance uma dimensão didática que contradiz sua teoria estética do romance “puro”. Além disso, o escritor resolve não incluir em sua obra a morte de Boris, argumentando que « Sans prétendre précisément rien expliquer, je voudrais n’offrir aucun fait sans une motivation suffisante. C’est pourquoi je ne me servirai pas pour mes Faux-Monnayeurs du suicide du petit Boris. » (GIDE, 2012, p. 417). De alguma maneira, quando Edouard se recusa a escrever sobre a morte de Boris, ele passa ao lado do sentido da vida – que é, segundo Benjamin, a finalidade do romance – condenando sua obra ao inachèvement – o inacabamento.