Alguns aspectos de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, de Leskov

Por Thaïs Chauvel, Mª e Doutoranda em Letras da USP

Nikolai Leskov foi um importante escritor russo, contemporâneo e amigo de Dostoiévski. É justamente sob a direção deste último que a revista Epokha publicou, em 1865, Lady Macbeth do distrito de Mtzensk (96 páginas). Nesta obra, Leskov cria uma atmosfera de tensão capaz de prender o leitor até a última página, logo veremos como ela se estabelece. Outro elemento interessante desta narrativa é o narrador, que possui algumas características que merecem ser observadas, afinal, seu modus operandi é, em parte, responsável pela beleza e particularidade desta admirável novela. A esse respeito, vale lembrar que Leskov tem uma forma tão peculiar de narrar histórias que o pensador alemão Walter Benjamin até lhe dedicou seu famoso ensaio: “O narrador”. 

O início de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk anuncia o tema sombrio da trama: “aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na alma sempre que nos lembramos deles” (p. 11), e antecipa que Catierina Lvovna protagonizou um “terrível drama”, razão pela qual foi apelidada “Lady Macbeth do distrito de Mtzensk”. No entanto, mesmo se a trama está anunciada no seu sentido mais amplo, não é o fato de Catierina Lvovna ser uma personagem assustadora, que realizou algo “terrível”, que realmente importa ao leitor. O que o interessa é como isto ocorreu. Nas palavras de Cortázar: “sente-se de imediato que os fatos em si carecem de importância, que tudo o que interessa está nas forças que o desencadearam, na malha sutil que os precedeu e os acompanha.” (CORTÁZAR, 1999, p. 358). E é exatamente o que acontece com Lady Macbeth do distrito de Mtzensk. Muito embora seja dito logo no primeiro parágrafo que Catierina é uma Lady Macbeth digna deste nome, o leitor interessa-se mais pelo “como” ela mereceu tal apelido. Com isso, a revelação do primeiro parágrafo serve para prender o leitor e suscitar sua curiosidade.

Já no parágrafo seguinte, o narrador descreve uma Catierina Lvovna que nada se parece com uma criminosa semelhante à Lady Macbeth, a perversa personagem imortalizada por Shakespeare. Pelo contrário, surge aos olhos do leitor, desconfiado, uma moça “de aparência muito simpática” que não corresponde de modo algum com a expectativa criada pelo narrador. Isso só contribui para atiçar ainda mais sua curiosidade e descobrir logo o que aconteceu para esta moça tornar-se perversa. Saber o que ela se tornará só aumenta a tensão que carrega o desenvolvimento da trama. O resto do primeiro capítulo caminha sem maiores explicações e “nos aproxima lentamente do que é contado”. Assim, o fato do leitor já conhecer o resultado final da história, apenas cria uma tensão maior, causada pela expectativa da transformação da personagem principal. Transformação esta que só começa de fato a aparecer no capítulo quinto, quando comete seu primeiro crime.

Outros elementos que aparecem no desenrolar da trama aumentam o suspense e a tensão da narrativa. O final de alguns capítulos são extremamente carregados de tensão, como o final do capítulo quarto: “ Foi assim que Borís Timofiêtch decidiu; só que esta sua decisão não se realizou.” (p. 24). Esta afirmação antecipa que algo aconteceu com Borís Timofiêtch que o impediu de concretizar seu plano. O que será que houve? O título e a abertura da novela já entregam o fato de que Catierina Lvovna se torna uma mulher cruel, será que foi ela que impediu a decisão de se concretizar? 

Além disso, não são poucas as frases que soam de maneira profética. No sexto capítulo, Catierina Lvovna diz para Serguiêi: “ se tu me trocares por outra qualquer, seja ela quem for, aí, meu amiguinho do peito, me desculpa, porque com vida não vou me separar de você” (p. 32), este comentário é dito de tal forma que parece uma premoniação na medida em que o leitor fica na expectativa de que isso venha a acontecer. Lady Macbeth do distrito de Mtzensk é uma obra de tensão na qual o narrador antecipa elementos com o intuito de deixar o leitor na expectativa da realização de algo temeroso. A tensão é um dos elementos essenciais da narrativa Lady Macbeth do distrito de Mtzensk. Outro aspecto muito importante é o narrador, e seu ponto de vista peculiar. 

O narrador de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk é alguém, isto é, uma pessoa inserida numa comunidade. O que fica claro pelo uso da primeira pessoa do plural: “nossas paragens” “nossa nobreza” (p. 11). No entanto, ele não é testemunha, nem personagem da história, ele é onisciente e externo à trama. Seu status é onisciente, pois sabe de tudo, inclusive coisas que um simples observador não poderia deduzir como “Para ela não existia nem a luz nem a escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria, ela não compreendia nada, não amava ninguém, não amava a si mesma” (p. 65). Esta sentença comporta certos aspectos que Catierina Lvovna desconhece; ela acredita amar Serguiêi, não pensa não amar ninguém. Quem acha isso é o narrador que dá esta informação ao leitor.

Apesar de ser onisciente, o narrador desta obra não revela todo seu conhecimento aos olhos do leitor. Ele não passeia pela mente de todos os personagens e apenas fornece o ponto de vista de Catierina. Embora os estados mentais das demais personagens possam ser inferidos por meio das ações e do contexto, o leitor nunca tem um acesso direto à mente de Serguiêi, de Zinóvi Boríssitch, ou do sobrinho, por exemplo. 

 O ponto de vista de Catierina aparece ora no discurso indireto livre: “ela iria alegrar-se, Deus, como iria alegrar-se ao cuidar um pouco de uma criançinha” (p. 12), ora no discurso direto: “por que vou ter mesmo de ficar sem o capital por causa dele” (p. 11). Este narrador circula no nível mais superficial da mente de Catierina Lvovna, pois seu discurso é articulado e simples. Apesar de mostrar alguns acontecimentos pela perspectiva de Catierina Lvovna, o narrador utiliza seu ponto de vista em algumas ocasiões apenas, para nos manter afastados da personagem. De fato, o narrador tem uma predileção pela cena em si. Ele transmite a história ao leitor pelas palavras e ações das personagens. Elas falam e agem por elas mesmas, e o narrador raramente intervém para fornecer demais explicações. O próprio evento predomina, é o caso de: “Serguiêi nada respondeu. Os lábios de Serguiêi tremiam e ele mesmo estava tomado de febre. Só os lábios de Catierina Lvovna estavam frios.” (p. 47). É certo que esta cena é narrada com exatidão, mas como observou Walter Benjamin, o leitor é “livre para interpretar a história como quiser.” (BENJAMIN, 2008, p. 203).

Se o leitor é “livre para interpretar a história como quiser” é porque, segundo Walter Benjamin, “o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor”. O legítimo “racconteur” evita a análise psicológica das personagens e explicações. Em Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, o narrador não fornece uma análise psicológica de Catierina Lvovna, nem de Serguiêi, nem de nenhum personagem da trama. Suas motivações conhecidas são as que eles expõem, seja pela fala, seja por um comportamento denuncia uma intenção disfarçada, mas não porque tem acesso aos seus pensamentos. Ademais, este narrador não nos fornece explicação alguma, cabe ao leitor reunir os elementos esparsos na narrativa para encontrar possíveis respostas. Assim como o narrador apresentado no ensaio de Benjamin, o narrador de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk não explica, ele se contenta em cumprir sua função primordial: contar.

Isso se deve também ao fato do “racconteur” das antigas narrativas ser fonte de sabedoria. Em seu ensaio, Walter Benjamin opõe a sabedoria à informação, dizendo que o “racconteur” é o que transmite a sabedoria. A sabedoria aparece inclusive na forma de conselho tecido da experiência viva. De fato, a partir da matéria da narrativa, o narrador de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, chega a conclusões sobre o matrimônio e sobre a natureza humana. Por exemplo, no décimo quinto capítulo ele diz: “Aquele […] que não acalenta a idéia da morte […], mas a teme, esse precisa tentar abafar essas vozes ululantes com algo ainda mais horrendo que elas. Isso o homem simples compreende perfeitamente: então ele dá asas a toda a sua simplicidade animal […] torna-se excepcionalmente mau.” (p. 77). Aqui, o narrador tece um tipo de sabedoria que nasce da observação da existência.

Outros exemplos de sabedoria são os provérbios, muito presentes nesta narrativa. Se contar as canções, ao todo são cinco provérbios populares. A epígrafe da narrativa é um provérbio: “só coramos ao cantar a primeira canção” (p. 9), da mesma forma, Catierina Lvovna só “cora” ao cometer seu primeiro crime, os demais sequer a fazem corar. Esta epígrafe traz os provérbios como um elemento importante da narrativa. No capítulo décimo terceiro, aparece: “e o solzinho ainda “iluminava muito, mas não aquecia”, como diz o provérbio popular.” (p. 65). Logo no primeiro capítulo, “o tédio das casas de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar” (p. 13). São sabedorias populares que dizem respeito a uma coletividade específica e que refletem sobre aspectos práticos e do cotidiano. O narrador insere-se numa comunidade específica, com costumes, provérbios, e hábitos próprios, no décimo segundo capítulo ele diz: “nosso povo é religioso” (p. 61), segundo Walter Benjamin: “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo” (BENJAMIN, 2008, p. 214).

Para Walter Benjamin, a narração preserva a memória da coletividade, a história circula de geração em geração e sobrevive por ser contada e recontada. No primeiro parágrafo de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, o narrador se apresenta como quem vai contar um caso que aconteceu em sua região, no seio da sua comunidade: “mulher de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual, nossa nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chamá-la “Lady Macbeth do distrito de Mtzensk.” O fato ocorreu outrora e permanece na memória coletiva como uma história que suscita tremor. Além disso, o narrador apresenta marcas de oralidade ao longo da trama, no nono capítulo: “ e de repente, pimba” (p. 49) e “uma semana depois, zás” (p.49), no décimo primeiro: “pernas pra que te quero!” (p. 59), e no décimo quinto capítulo:“Rufa o tambor: tan-tanantan-tan” (p. 77) . Pimba e zás são interjeições próprias de quem está contando uma história usando a linguagem falada. Da mesma forma,  fazer o barulho do tambor, é um recurso utilizado por um contador oral.

O narrador também alterna os tempos verbais da narrativa de maneira insólita, presentificando vários momentos, aumentando assim o impacto que têm no leitor. O narrador alterna pretérito perfeito e presente em frases que se seguem, no sétimo capítulo, diz: “Serguiêi acordou, acalmou Catierina Lvovna e tornou a adormecer; mas o sono dela tinha ido todo embora e já não foi sem tempo.” (p. 37) e sua próxima frase é: “Está ela deitada, de olhos abertos, e de repente ouve algo” (p. 37). O presente é usado para fixar uma cena que vai ser importante, faz o leitor vivê-la como se de fato fosse o momento presente. Torna a narrativa mais viva e mais assustadora, diminuindo a distancia entre a história, o tempo, as personagens e o leitor. Estes recursos utilizado pelo narrador permitem recriar uma sensação de história contada oralmente a um grupo de pessoas. A característica principal do “racconteur” de Walter Benjamin é, precisamente, a oralidade. Assim, Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk é uma belíssima obra de tensão de tirar o fôlego, que reproduz um estilo próprio do antigo contador de histórias que relembra fatos curiosos ocorridos na sua comunidade e que os conta para transmitir sabedoria e sustentar a memória.

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