Glória & Tragédia: o destino de Aquiles e Heitor na Ilíada

Por Thaïs Chauvel, mestra em Letras e doutoranda USP

A Ilíada de Homero, é um poema épico que canta os grandes feitos dos heróis. O mundo da epopeia é um mundo mítico, que narra a época de bronze em que os homens eram superiores e os deuses intervinham, de modo benéfico ou danoso, nas suas vidas, entrelaçando os planos divino e mortal. A poesia épica é, portanto, idealizada e confere “glória imperecível” aos grandes feitos dos heróis, estes homens superiores: belos aristocratas que excelem no discurso como na luta realizando seu potencial através dos grandes feitos que serão relembrados pela poesia, conferindo-lhes a imortalidade que lhes nega a vida. Este poema se abre com a cólera de Aquiles, o melhor dos aqueus e herói bélico por excelência, que, ofendido por Agamemnon, retira-se do combate logo no primeiro canto, podendo confundir a audiência que pergunta-se como ele poderá conquistar o kleos aphthiton sem participar do conflito. Do lado troiano, encontra-se Heitor, exemplo de nobreza e virilidade, carismático e caro ao ouvinte/leitor do poema, que alcança por meio de sua tragédia particular sua “glória imperecível”. Este curto ensaio propõe esclarecer a construção destes heróis analisando a curiosa construção e sentido do kléos de Aquiles, bem como a terrível tragédia do príncipe troiano Heitor.

É certo que a relação de proximidade com os imortais engrandece os heróis, porém, esta dolorosa interseção dos planos divino e mortal também realça a dura realidade do herói de vida breve: por melhor que ele seja, este não escapa ao “fado irresistível”, a morte. Em tempos de guerra então, a morte torna-se uma realidade cotidiana, uma vez que ela é a consequência imediata do combate e da luta. Assim sendo, a Ilíada é um poema sobre vida e morte, ou como conclui Trajano Vieira, sobre a mortalidade (2003). Embora Aquiles não morra no decorrer deste poema, sua morte prematura já está anunciada logo no primeiro canto pela inconformada genitora imortal de Aquiles, Tétis. Parte da tragédia do Peleida Aquiles é saber que, ao participar do conflito, alcançará glória duradoura, mas morrerá prematuramente. O sofrimento deste herói provém deste conhecimento e deste dilema: participar da guerra e trocar a vida pela glória imperecível, ou retirar-se do conflito e viver uma vida pacífica para depois cair no esquecimento? Embora estivesse conformado com seu destino e tivesse conscientemente escolhido a glória dos grandes feitos na guerra à vida, a atitude de Agamemnon ao tormar-lhe o seu Géras, diminuindo assim sua honra, o leva a questionar a guerra e a cogitar um retorno a Ftia.

Por mais difícil que seja a escolha de Aquiles, este “consciente e deliberadamente trocou sua vida pela glória duradoura” (Knox, 2011), enquanto que Heitor não pode se dar ao luxo de escolher. A mortalidade de Heitor é muito mais problemática no sentido em que a cidade inteira de Tróia depende da vida e da força de Heitor para defender-se. Como Tróia está condenada, uma vez que Páris violou o princípio da hospitalidade, Heitor também está fadado à morte, e a audiência aguarda o funeral de Heitor, que é o funeral de Tróia, desde o momento em que Zeus anuncia a derrota iminente da cidadela no Canto I. No entanto, a morte do herói só ocorre de fato no Canto XXII e o poema todo é uma lenta construção do clímax: o duelo com Aquiles e o inevitável encontro de Heitor com a Moira. 

Para maior emoção no momento do clímax, o poeta atarda ao máximo o momento final. No Canto VI, Heitor já é chorado como morto, e ao expirar, Pátroclo preconiza: “Não muito viverás. Já emparelham contigo a morte e a Moira acerba. Às mãos de Aquiles morrerá.” ( XVI, vv.852-854). É com muito páthos que o poeta elabora diversas despedidas a Heitor, todas antecipando as terríveis consequências que sua morte acarretará. No canto VI, na comovente cena de despedida de Heitor e Andrômaca, este lhe diz: “Por mim não faças sofrer teu coração; contra os fados ninguém me fará baixar ao Hades;” (vv.486-489), mas a balança de Zeus logo irá baixá-lo ao Hades e eles não voltarão a se encontrar. A súplica dos pais de Heitor que imploram para que ele fuja de Aquiles e entre em Tróia também é repleta de páthos. É com muita emoção que Príamo se coloca como velho pai indefeso e que Hécuba expõe o seio pedindo que o filho a poupe de sua morte. Heitor não combate pela glória, mas para defender seus concidadãos, seus pais, sua esposa e seu filho, é sua obrigação de príncipe e todos dependem dele, de sua bravura. E esta é sua tragédia, enquanto herói ele não pode fugir da luta, recusar o combate, ele deve abraçar a luta a despeito da morte.

A hesitação que toma conta de Heitor contribui para o aumento da tensão, três voltas ao redor da muralha ele corre, fugindo à Moira, correndo de Aquiles, pés-velozes, ajudado por Apolo que o faz correr mais rápido. O medo não diminui sua condição de herói uma vez que ele o enfrenta e toma coragem para combater e, ao ver que os deuses não lhe são mais favoráveis, morrer: “Agora a morte má não me está longe, ronda-me. Não me é dado fugir. Zeus o quer, e seu filho, o deus longiflecheiro. Antes, benignos, davam-me proteção. Agora a Moira colhe-me.”(vv.300-304). A morte não diminui, nem tira o valor do herói: vivo, ele era importante o suficiente para os deuses importarem-se com ele, e morto, as divindades não permitem a dilaceração de seu cadáver e preservam-lhe a beleza, característica do herói. Além disso, a devolução de seu corpo é motivo para uma assembleia entre os deuses, na qual eles decidem exigir que Aquiles entregue o corpo do herói ao seu pai para o funeral público apropriado que o herói merece.

Mas Aquiles, guerreiro supremo, também vive sua própria tragédia. Numa cultura da vergonha, na qual o olhar público determina o valor de uma pessoa, Agamemnon, toma-lhe seu géras, parte do espólio de guerra que mensura e materializa sua timé, subtraindo sua honra; Neste momento, rui o conceito de heroísmo e Aquiles, guerreiro bélico por excelência, deixa de acreditar na própria guerra e na glória, uma vez que sua honra no combate não foi respeitada. A partir da crise do Géras no Canto I da Ilíada, nunca mais a demanda da glória o levará a combater (LOURENÇO, 2008). Se Aquiles retorna ao combate no Canto XX é pela amizade ao seu falecido companheiro de armas Pátroclo, a fim de vingar sua morte. Ele mantem-se fiel ao valor do philos, tão relevante na conduta do comportamento heróico que Glauco e Diomedes decidem não enfrentar-se em nome de uma antiga relação de hospitalidade. É respeitando este valor e mantendo-se fiel ao código do herói que Aquiles recusa a compensação ofertada pela embaixada de Agamemnon no Canto IX: esta tem um objetivo prático e visa a vitória por meio da força bélica de Aquiles, e não restabelecer os laços da philótes rompidos no Canto I. Não é pela excelência heroica, mas por amor a Pátroclo que ele retorna ao conflito conquistando seu kléos ao matar Heitor e abraçando sua morte. Ele mata Heitor sabendo que a morte da vítima acarretará sua morte, assim como a de Pátroclo acarretou a morte de Heitor. Aquiles conquista, ao vingar Pátroclo seu Kléos e portanto torna-se um herói; mas a Ilíada termina-se com o funeral de Heitor, “doma-corcéis”, isto por que o Peleida identificou-se com o velho Príamo, que veio suplicar-lhe a devolução do corpo do filho, concedendo um funeral a Heitor em nome de seu pai, Aquiles torna-se assim mais humano também.