Por Thaïs Chauvel, mestra em Letras e doutoranda USP
As Cartas persas publicadas em 1721 pelo filósofo iluminista francês Montesquieu obtiveram tanto sucesso que foram reeditadas trinta vezes durante a vida do autor. Este romance epistolar de cunho filosófico apresenta Usbek e Rica, dois persas que deixaram sua terra natal por motivos políticos e que viajam pela Europa relatando suas surpresas e experiências vivenciadas ao longo de sua jornada. Enquanto Usbek, homem casado e maduro, medita sobre questões metafísicas, jurídicas e políticas que anunciam O espírito das leis (1748), o jovem e desinibido Rica comenta com ironia as extravagâncias da sociedade francesa do Antigo Regime, entre as quais se encaixa a moda, descrita com precisão na carta XCIX.
Nesta carta de costumes, Rica comenta todo o seu espanto ao testemunhar os “caprichos” da exigente moda francesa, que nem se pode descrever tamanha sua instabilidade. Com efeito, qual seria a utilidade de descrever vestimentas e tecidos que mudam a cada estação, quando uma nova moda surge para destruir o trabalho de seus artesãos e também do nosso narrador? Ora, por trás desta sátira sobre um fato mundano, Montesquieu desenvolve com habilidade uma crítica política encoberta, que esta resenha pretende desvelar.
Rica, cujo nome retoma as duas primeiras sílabas do adjetivo francês ricaneur1 – que significa rir de maneira sarcástica – é estrangeiro, o que confere legitimidade à sua carta. De fato, o seu deslocamento lhe permite enxergar as extravagâncias da sociedade francesa do Antigo Regime, além de expressar seu espanto. Sendo assim, o campo lexical da surpresa é amplamente desenvolvimento nesta carta, na qual se repete por duas vezes a pergunta retórica “quem poderia acreditar?”. Ademais, os procedimentos de exageração ressaltam o estranhamento e revelam toda a ironia subjacente ao texto, trufado de hipérboles. Assim, Rica declara com categoria que uma mulher que se afasta de Paris por seis meses retorna do campo tão antiga como se tivesse alí se esquecido por trinta anos! Ora, a postura irônica do narrador persa revela um julgamento crítico que é possível graças ao seu estranhamento causado pela distância geográfica, cultural e religiosa entre o mundo oriental e o mundo ocidental.
Muito prático, Rica orienta seu olhar persa para avaliar com senso de humor o custo exorbitante que representa a moda para um marido – valor este que se torna ainda mais problemático se considerarmos que a moda se altera a cada seis meses. Sendo assim, nosso narrador aponta para a instabilidade da moda e a falta de memória dos franceses, que “esqueceram como estavam vestidos este verão”. Permanece após este comentário jocoso, um questionamento sério sobre as implicações que envolvem uma sociedade na qual não se cultiva a memória e onde se aceita “ignorar ainda mais” até mesmo o que se vestirá no inverno.
Ao relatar a instabilidade da moda, Rica observa que “O filho desconhece o retrato de sua mãe, tanto a roupa com a qual está pintada lhe parece estrangeira: ele imagina que é alguma Americana ali representada, ou que o pintor quis exprimir alguma de suas fantasias”2. A crítica presente neste comentário não se limita à instabilidade da moda mas revela que o exagero de uma moda, fazendo com que uma mulher branca se pareça com uma americana – ou seja, uma índia nativa das Américas – por conta do excesso de rouge.3 Ora, nem mesmo o filho, que representa o vínculo humano de maior proximidade com a mãe, é capaz de reconhecer aquela que lhe deu à luz, tamanha a influência da moda e da maquiagem de uma determinada época.
A metáfora da filiação é retomada por Rica mais adiante, quando este declara que as filhas são “feitas” de outra forma que suas mães na França. Com efeito, a moda altera também o comportamento das mulheres, que “outrora tinham dentes” – coisa impensável [está fora de questão] num momento em que a moda é sorrir sem mostrar os dentes.4 Além de alterar o comportamento das mulheres, a moda descrita por Rica ainda deforma o corpo da mulher, pois “houve um tempo em que a altura imensa [dos penteados] colocava o rosto de uma mulher no meio dela mesma”. Ou seja, os excessos da moda chegam a criar uma nova espécie de ser humano que se assemelharia a um monstro com a cabeça no meio do corpo.
Ora, as hipérboles identificadas nos exemplos citados revelam o recurso de ironia através do qual o narrador constrói sua crítica aos excessos da moda que levam à aberrações, devido as alterações extravagantes às quais submetem o corpo feminino. No entanto, é apenas no último parágrafo do texto que o leitor percebe que trata-se de uma crítica política, quando Rica emprega os substantivos “príncipe” “nação” e “corte” para identificar o epicentro da moda: o monarca. Com efeito, ele observa que os franceses mudam de valores e costumes “segundo a idade de seu rei”. A alusão ao absolutismo é explícita pois o rei determina pela sua idade todas as reviravoltas que a moda inflige à sociedade. O monarca impõe através da moda ditada por ele não apenas um comportamento a ser seguido, mas um verdadeiro “padrão”. A conclusão da carta XCIX é clara: “A alma do soberano é um molde que dá forma a todas as outras”. Uma vez que o rei concentra todo o poder em suas mãos, ele “poderia até mesmo conseguir tornar a nação séria”, se ao menos ele tivesse tentado, como assinala com ironia Rica, cuja crítica ao absolutismo não se limita ao despotismo. A instabilidade da moda – e portanto do rei – é tamanha que arquitetos “foram obrigados” a aumentar a altura e a largura das portas de acordo com a vestimenta e o penteado das mulheres, e sendo assim “as regras de sua arte foram subjugadas a esses caprichos”. Caprichos da moda, caprichos do rei, que controla a produção artística da França com autoridade, praticando a censura e usufruindo da célebre lettre de cachet, com a qual mandava aprisionar quem quisesse. Neste regime absolutista, a única “revolução” possível é a da moda, que faz os penteados “subirem insensivelmente” e despencarem “de repente”; e a única forma de expressão permitida, são as moscas de beleza que as mulheres aplicavam, e cujo lugar no rosto indicava um determinado significado. Sendo assim, na França do início do século XVIII, a moda altera tudo e não altera nada.
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1 Jean Starobinski observa a relação do nome Rica e o adjetivo ricaneur em seu Prefácio de 1973 às Cartas Persas.
2 Trechos traduzidos pelo autor da resenha.
3 Conforme esclarece Laurent Versini em sua nota 1 à Lettre XCIX.
4 Conforme esclarece Laurent Versini em sua nota 4 à Lettre XCIX.